O Dragão adormeceu?
Com praticamente metade do ano ficando para trás, as apostas de que a China voltaria com ritmo acelerado de recuperação econômica após o processo de reabertura perdem forças e frustram o mercado. Ao longo dos meses, os dados foram mais fracos que o esperado, mesmo com um PIB surpreendendo positivamente – carregado pelo setor de serviços, enquanto a indústria sofre com consumo interno arrefecido e demanda externa desacelerando. Os altos preços dos insumos também têm pesado negativamente nas margens das companhias, em especial as manufatureiras, o que levou a uma queda de mais de 20% nos lucros industriais na comparação do acumulado no ano. Somado a isso, ainda temos a crise no setor imobiliário, com entregas em atrasos, ausência de crédito e atuação forte do governo contra a especulação limitando o apetite no setor, importante driver de crescimento da economia chinesa nas últimas décadas, além de um país com alto índice de alavancagem e passando por um processo de reestruturação de seu modus operandi.
Com todos estes revezes, o que esperar para a segunda maior economia do mundo para o restante do ano e o futuro?
Na última leitura, os dados de PMI mostraram comportamento misto na economia chinesa. O PMI Manufatura oficial registrou 48,8 pontos, em nível contracionista e reduzindo do patamar observado em março. Contudo, o PMI Caixin manufatura mostrou avanço a 50,9 pontos, avançando ante março e chegando ao nível de expansão.
A produção siderúrgica chinesa também funciona como um bom termômetro da demanda industrial no país. Vimos o volume produzido bater recorde em 2020 ao totalizar 1.054 Mt, arrefecendo desde então. A produção média mensal em 2020 ficou em 87,9 Mt, e em 2021 bateu pico de 97,9 Mt em abril, maior nível da série histórica. Já em 2022, a média mensal de produção de aço ficou em 84,7 Mt, 4% menor que 2020, momento do auge da pandemia, fechando o ano com produção total de aço de 1.009 Mt, em linha com nossas expectativas. Mesmo com a reabertura, no acumulado de 2023 até abril, o que vimos foi um volume produzido apenas 3% maior que o observado no mesmo período de 2022. Nossas expectativas são de um menor volume de produção, em cerca de 950 Mt – 1.000 Mt para os próximos anos.
Quanto ao consumo aparente de aço, vemos mesmo patamar de 2022, em 80,5 Mt, mas neste caso com maior avanço dos volumes exportados que registram uma média mensal de 7Mt versus 4,5 mt em 2022. Os estoques de aço no país recuaram ao longo do ano, seguindo a menor produção visando readequação dos preços de aço e melhora nas margens das siderúrgicas, altamente pressionadas por conta dos elevados preços de insumos. De fato, quando olhamos os preços dos principais produtos siderúrgicos na China, vemos patamares cerca de 20% menor que a média observada em 2022, com o vergalhão, principal produto para a construção, reduzindo 23% a/a, sendo comercializado em US$ 508/t.
A disparada nos preços das commodities durante a pandemia, e principalmente com o início da guerra na Ucrânia, e que levou a pressões inflacionárias em todo o mundo, seguem pressionando as margens das companhias, inclusive na China. Os lucros da indústria tiveram forte recuo desde o pico em 2021 e, quando comparados a 2022, já vemos contração de mais de 20% em 2023.
O que explica a decepção com a China?
Uma recessão de balanço acontece quando altos níveis de endividamento do setor privado levam à contração econômica. É caracterizado por uma mudança no comportamento dos agentes privados, fazendo com que eles priorizem o pagamento de dívidas em detrimento de maiores gastos e investimentos, o que resulta em uma menor taxa de crescimento da economia.
Isso pode levar a um ciclo vicioso. Com a economia desacelerando as dívidas se tornam ainda mais insustentáveis, o que por sua vez força os agentes a priorizarem seu pagamento, reforçando o impacto negativo inicial. Tipicamente, tal situação ocorre após o estouro de alguma bolha de ativos, que por sua vez se originou em um período de excesso de crédito. Um impacto adicional pode ocorrer caso tais ativos tenham sido usados como colateral dessas dívidas, aprofundando ainda mais o impacto negativo na atividade econômica.
Durante a pandemia, o governo chinês adotou a política de tolerância zero contra a covid que prolongou o impacto negativo na economia e pode ter causado danos a longo prazo. Para contrabalancear os danos, o governo chinês implementou um programa de apoio focado nas empresas, com muitas delas com um plano de negócio de forte crescimento e vinham de um fluxo de caixa negativo, acumulando dívidas excessivas. Então, o governo adiou a coleta de impostos, prolongou a dívida das empresas e forneceu financiamento direto. Os consumidores, por outro lado, foram menos ajudados, o que fez com que aumentassem suas poupanças para criar uma reserva de emergência.
Além disso, o governo chinês alterou sua política econômica durante a pandemia, que antes era focada no crescimento a qualquer custo, e passou a ser mais ideológica, com diversas regulações em setores considerado chave como educação, big tech, finanças e jogos. Com essas regulações, o crescimento potencial desses setores diminuiu e forçou tais empresas a desalavancarem para garantir a sobrevivência.
Durante a pandemia, outro setor que chamou atenção foi o imobiliário, que foi o centro de uma grande crise no fim de 2021 com o excesso de dívidas da principal incorporadora chinesa, a Evergrande. Desde então, o setor imobiliário chinês tem fraco desempenho e ainda continua bastante alavancado e com modelos de negócios ultrapassados. Com isso, a perspectiva do setor continua bastante deprimida, recuperando marginalmente no curto prazo. Como resposta, o governo chinês tem indicado que irá realizar políticas de incentivo ao setor numa tentativa de revivê-lo. Ainda assim, o setor continua suscetível ao processo de desalavancagem da economia, impedindo uma plena recuperação. Como agravante, habitação é uma boa parte da riqueza das famílias e a renda obtida com venda de terrenos responde por 30% das receitas dos governos locais. Além disso, imóveis e terrenos são amplamente utilizados como colateral no sistema financeiro chinês, logo, queda nos preços dos imóveis não apenas afetaria a economia chinesa através do canal do balanço das empresas, mas também via famílias e governos locais.
Após longo período de bonança, o mercado imobiliário chinês passou por reajustes. Os preços dos imóveis sofreram fortes quedas, especialmente nos grandes centros, resultado da menor demanda por conta dos lockdowns. Com a volta à mobilidade nas grandes cidades, tem-se observado um leve avanço da procura por imóveis residenciais multifamiliares, principalmente, o que tem levado a uma inversão nos movimentos de queda do último ano.
Ainda, após meses em queda agressiva, o sentimento do setor apresentou leve recuperação nos últimos dois meses, animados pelas perspectivas de novos estímulos por parte do governo, mas ainda longe dos níveis observados ao longo dos últimos anos.
Outro ponto que chama atenção é o alto nível de endividamento da economia chinesa, que já ultrapassa o de países desenvolvidos. Boa parte dessa dívida é de responsabilidade das empresas estatais chinesas, que são ativamente usadas pelo governo chinês para implementação de políticas econômicas, especialmente durante a pandemia. E o baixo nível de crescimento fez com que as receitas diminuíssem, tanto dos governos locais quanto das empresas, e a diferença foi obtida através da emissão de dívida. Por outro lado, a dívida das famílias é relativamente pequena e está em tendência de queda. Isso se deve ao fato de que boa parte da riqueza das famílias está atrelada a imóveis, portanto, quando os preços dos imóveis reduzem, as famílias precisam aumentar a poupança para manter nível da riqueza inalterado.
A China não está em uma recessão de balanço. Entretanto, com os fatores listados aqui, essa é uma hipótese que não pode ser descartada para os próximos anos. De todo modo, o efeito do alto endividamento e da necessidade de recomposição dos balanços das firmas e famílias parece ter relação direta com a decepção da reabertura chinesa.
E com esse desalinhamento de expectativas é natural observarmos correções mais fortes nos papéis atrelados à economia chinesa, incluindo as commodities. Desde o início do ano, enquanto o Ibovespa avança 5,5%, o IMAT (índice de Materiais Básicos da B3, composto pelas principais empresas de commodities listada) contraiu mais de 6%, com os papéis da Vale despencando cerca de 20% no acumulado de 2023.
China está em um novo ciclo de desenvolvimento. Neste ciclo, seu crescimento será consideravelmente menor do que o observado nas últimas décadas, com a economia cada vez mais focada em serviços e com menor necessidade de criação de infraestrutura. Nesse contexto, a dívida da economia chinesa pode ser um fator de desaceleração do crescimento nos próximos anos, em razão da necessidade cada vez maior de dívida para gerar crescimento adicional. Além disso, a demografia chinesa deixará de contribuir com o crescimento. Apesar de ainda ter um estoque de população rural muito elevada, a política de filho único resultará em um decrescimento da população nos próximos anos, tanto é que a China já foi ultrapassada pela Índia como país mais populoso do mundo.