Conciliando o baixo desemprego e baixo crescimento dos salários no mercado brasileiro pós-pandemia
A taxa de desocupação atingiu a mínima história no trimestre móvel findo em agosto, alcançando 5,6%. O resultado é acompanhado de melhora nos demais indicadores que conjuntamente apontam para o melhor mercado de trabalho em mais de uma década, representando uma situação dramaticamente diferente da que foi vista até poucos anos atrás, marcada por alta ociosidade que tardou a recuperar tanto após a recessão de 2015-16 quanto nos primeiros meses após a pandemia.
Porém, a recuperação nos dados não se traduziu em melhora no ânimo das famílias, com a confiança do consumidor amplamente abaixo do período pré-2014, também não refletindo a escassez de mão de obra que passou a ser relatada pelas empresas após a pandemia. Temos, portanto, uma situação paradoxal: firmas relatam condições difíceis para obter trabalho, e famílias não relatam melhora em seu padrão de consumo, que está atrelado às condições salariais.
Num contexto padrão, apenas um dos dois poderia ser verdade ao mesmo tempo: com a maior dificuldade para obter mão de obra, trabalhadores ganham poder de barganha e passam a exigir reajustes salariais mais agressivos, que levam a aumentos no salário real e maior confiança do consumidor por meio de melhor poder aquisitivo. Essa relação entre desocupação e salários reais foi originalmente denominada como Curva de Phillips e ajuda a explicar outro vínculo importante, entre o mercado de trabalho e a inflação, com a presença de pressupostos adicionais.


No Brasil, a relação entre as duas variáveis é mais complicada: conforme a nossa medida de crescimento do salário real subjacente, o comportamento do mercado de trabalho brasileiro não tem sido uniforme ao longo dos últimos ciclos econômicos e o quadro geral mais se assemelha a uma “reta” de Phillips, onde os salários pouco reagem à taxa de desocupação.Porém, mesmo com essa situação pouco convencional, fica evidente o baixo crescimento do poder de compra dos trabalhadores atrelado ao menor desemprego observado em quase 40 anos, conforme estudo publicado pela FGV.
Esse fenômeno que tem ocorrido recentemente poderia explicar a desvinculação percebida entre a confiança das famílias e a falta de mão de obra, mas explica somente uma metade do quebra-cabeça. Partindo dos princípios de economia e sabendo que a demanda agregada por trabalho tem andado em ritmo robusto, uma resposta que concilia as duas pontas deve apontar para uma disfunção na capacidade dos trabalhadores de obterem poder de barganha, ou para alterações estruturais no lado da oferta que reduziriam a taxa de desocupação para além do esperado.
No nosso entendimento, o problema não está no canal de barganha: a taxa de desligamentos voluntários no setor formal praticamente dobrou desde as mínimas de 2016 para atingir recordes históricos, indicando que trabalhadores têm tido muito mais capacidade para aceitar melhores ofertas de emprego enquanto já estão ocupados.
No lado da oferta, a história é diferente: temos visto uma taxa de participação recorrentemente abaixo dos níveis pré-pandemia apesar do bom poder de barganha dos empregados, que em tese encorajaria a inclusão dos indivíduos à margem do mercado até formar um equilíbrio entre a oferta e demanda por vagas de emprego.
Esse déficit possui fortes distinções socioeconômicas: enquanto a participação em idade ótima (25-54 anos) dos estratos mais favorecidos da população aumentou levemente nos últimos anos, o mesmo indicador despencou para a população que recebe até meio salário mínimo per capita, correspondendo a uma perda agregada de 1,6p.p. na força de trabalho desde o 4T19. Embora parte das saídas sejam de trabalhadores desmotivados por conta de fatores de saúde ou insalubridade (prováveis cicatrizes dos efeitos sanitários da Covid-19), grande parte da redução na taxa de participação ocorreu de maneira definitiva para este segmento da população.
Parte da explicação para a abertura da “boca de jacaré” na força de trabalho está, por sua vez, fundamentada na expansão dos programas de assistência social ao longo do mesmo período: a Pnad indica que as transferências como proporção da renda dos domicílios mais pobres triplicou entre o 4T19 e o 4T24, aproximando-se do auge do Auxílio Emergencial, que chegou a ser fonte de 20% dos rendimentos da mesma faixa socioeconômica.




Em particular, apontamos para duas mudanças importantes que ocorreram após a normalização do mercado de trabalho pós-pandemia: a consolidação do Auxílio Emergencial em caráter permanente como Auxílio Brasil, com benefício-piso de R$400 mensais válidos a partir de dezembro de 2021, e a ampliação do piso para R$600, substituindo o Bolsa Família, válida a partir de agosto de 2022.
Com o valor usual das transferências correspondendo a pouco mais de um terço do salário mínimo, não é razoável de se esperar um grande desincentivo para trabalhar. Porém, alterações na economia sempre ocorrem na margem, e podem ajudar a explicar parte do fenômeno. Desta forma, identificando a data destes episódios e aplicando a técnica de decomposição para a taxa de participação na força de trabalho do grupo de renda mais impactado, podemos separar as variações da taxa de participação entre efeitos na margem extensiva (com a maior ou menor inclusão de domicílios nos programas de transferência) e na margem intensiva (com a maior ou menor participação no mercado de trabalho dentre os domicílios já incluídos nos programas de transferência).
Como regra de bolso, domicílios cadastrados em programas sociais possuem menor inclusão no mercado de trabalho, e a ampliação do atual Bolsa Família está associada com redução equivalente a 0,5p.p. na força de trabalho agregada. Porém, a causalidade deste efeito composição não é necessariamente clara, e pode refletir a entrada de famílias na lista de beneficiários após alguma condição que gerou saída do mercado de trabalho.
Por outro lado, os dois episódios de expansão dos programas de transferência estão associados, em conjunto, com o equivalente à perda de 1,3p.p. na força de trabalho agregada. A magnitude destes efeitos em conjunto com a ocorrência no trimestre imediatamente posterior aos episódios de expansão constituem uma evidência mais forte de causalidade, e ajudam a explicar parte da redução de oferta na mão de obra. Vale ressaltar que os resultados desta política não são necessariamente negativos do ponto de vista econômico (parte significativa das saídas ocorreram dentre jovens, que agora podem acumular escolaridade com mais facilidade), mas certamente contribuem para uma taxa de desemprego que seria maior do que a atual caso a expansão dos programas sociais não tivesse ocorrido.
Outra fatia da redução na taxa de desemprego pode ser atribuída à alterações demográficas: com o envelhecimento populacional e a democratização do ensino superior, o Brasil se tornou um país distintamente mais maduro e escolarizado do que no último ciclo econômico. Conjuntamente, outra regra de bolso na economia dita um menor risco de desemprego para trabalhadores maduros e instruídos.
Praticando o mesmo exercício econométrico feito anteriormente e corrigindo a taxa de desocupação pelo efeito composição, encontramos que o desemprego seria 1,5p.p. maior (7,1%) com a mesma estrutura de sexo e idade do início da Pnad em 2012, e 2,2p.p. maior (7,8%) caso o ajuste também fosse efetuado para o nível de instrução.



Estes achados indicam que a taxa natural de desemprego – nível que estabiliza o ritmo de crescimento dos salários – provavelmente reduziu nos últimos anos, também trazendo coerência para a dicotomia inicialmente apontada. Conforme o avanço da transição demográfica na próxima década, devemos notar uma redução ainda mais aguda dos jovens trabalhadores e estabilização do contingente mais maduro, intensificando os desafios de oferta para as empresas brasileiras.
Conjuntamente, é também provável que a implementação de reformas econômicas nos últimos anos tenha alterado a estrutura da economia brasileira de modo a acomodar uma menor taxa de desemprego sem pressionar os salários: com a Reforma Trabalhista e a Lei de Liberdade Econômica, além da flexibilização dos vínculos de trabalho por meio de ocupações em aplicativos, empregar mão de obra se tornou mais fácil do que antes no Brasil, assim repetindo os efeitos das reformas Hartz I-IV que transformaram significativamente o mercado de trabalho da Alemanha na década de 2000 e contribuiu para que o país atingisse uma das menores taxas de desemprego na União Europeia de maneira sustentável.
De todo modo, apenas nos atendo às alterações estruturais citadas nesse relatório, encontramos que os efeitos demográficos e o efeito dos programas sociais na taxa de participação da força de trabalho provocaram uma redução de aproximadamente 3,3p.p. na taxa de desocupação desde 2012. Logo, caso as mesmas condições de oferta de mão de obra encontradas no início da PNAD Contínua prevalecessem hoje em dia, teríamos um desemprego de cerca de 9% que ainda estaria 2p.p. aquém das mínimas atingidas em 2014 e que colocaria o cenário do mercado de trabalho brasileiro numa posição coerente com a Curva de Phillips – sendo essa relação restaurada após a incorporação destes ajustes.
Em resumo, os resultados evidenciam que a menor ociosidade da mão de obra no Brasil deve se firmar no longo prazo, ainda que por fatores não necessariamente positivos, induzindo empresas a possuírem dificuldade de contratar mais empregados e trabalhadores a não conseguirem reajustes salariais tão robustos quanto antes.



