Examinando os impactos da nova política comercial americana
Durante o final de semana, Donald Trump cumpriu sua promessa de campanha e anunciou medidas tarifárias sobre Canadá, México e China, os três principais parceiros comerciais da economia americana. Sobre os dois primeiros, as tarifas são de 25% sobre todas as importações, enquanto as tarifas sobre as importações chinesas são de 10%. Além disso, sobre as importações de energia do Canadá, as tarifas são de 10%, justamente devido à dependência da economia americana às importações de energia canadense.
Foi o maior choque sobre o comércio internacional em muitos anos. Os três países taxados representam por 43% do total importado pelos Estados Unidos, portanto, há uma grande incerteza sobre o impacto dessas medidas na economia americana, em particular, e na economia global, em geral. A priori, o impacto pode ser bastante danoso.
Desde a implementação do NAFTA, na década de 90, a manufatura americana evoluiu para um sistema altamente integrado, com insumos de produção e componentes dos bens finais sendo produzidos por todos os membros do pacto e com esses itens sendo importados e exportados diversas vezes até culminar no produto final. E esse sistema foi desenvolvido justamente porque as tarifas ou eram muito baixas ou zero, e principalmente, porque eles tinham a garantia de que continuaria assim. O choque desse fim de semana altera completamente a sistemática de produção da indústria americana.
Em tese, um choque tarifário não geraria inflação, apenas uma mudança no nível de preços. De fato, temos evidências de que foi isso o que ocorreu em 2018, quando Trump, em seu primeiro governo, anunciou diversas tarifas sobre a China. O gráfico ao lado, apesar de restrito a um grupo muito restrito de bens, mostra que não houve alteração no ritmo de crescimento dos preços, apenas um aumento no nível de preços proporcional ao tamanho das tarifas. Ainda assim, o Yale Budget Lab estima um impacto de até 0,76 ponto percentual na inflação medida pelo PCE após a implementação das tarifas, com o choque se concentrando em itens como gás natural e bens eletrônicos, o que pode ser especialmente danoso para a economia americana em um contexto de investimentos agressivos em inteligência artificial, que são intensivos em eletricidade e computação.

Uma grande incerteza é como o Fed reagiria a esse choque inflacionário. Com base no FOMC de dez/18, que trouxe estudos internos acerca da guerra comercial instaurada no mesmo ano, os impactos dependem do segmento de bens atingidos: as medidas devem ser danosas ao crescimento em qualquer cenário, porém o impacto nos preços é ambíguo, com a tarifa inflacionária nos bens de consumo contrastando com a deflação observada nos bens de capital, como parte de um processo de substituição mais flexível. Assim, o cenário de uma tarifa universal resultaria em um juro 25-50p.b. acima do contrafactual, enquanto uma tarifa focada nos bens de capital resultaria em um juro 50p.b. menor. Contextualizando esses achados na trajetória atualmente prevista pelo Fed, uma tarifa universal resultaria na manutenção dos juros atuais por mais tempo, enquanto o foco nos bens de capital motivaria um retorno ao ciclo de cortes com ritmo ligeiramente mais agressivo.
Entretanto, a magnitude do atual choque é bastante diferente do choque tarifário de 2018. A abrangência das tarifas anunciadas nesse final de semana é muito maior, portanto, não se pode desconsiderar o potencial impacto inflacionário dessa medida, que poderia ir além do simples aumento no nível de preços. Entretanto, o principal impacto deverá ser sobre a eficiência econômica americana. Como mencionado, a manufatura americana, especialmente a automotiva, é bastante dependente dos seus parceiros comerciais e durante a produção há intensa movimentação entre insumos e peças através das fronteiras. Agora, cada um desses movimentos será taxado, tendo o potencial de desarranjar a cadeia produtiva americana.
E o efeito rede nesse contexto é bastante relevante. Para que essa coreografia da produção aconteça, as firmas da rede de produção têm contratos com parceiros específicos. Tais parceiros podem não ser lucrativos o suficiente para sobreviver às tarifas. Assim, não seria apenas uma empresa pouco eficiente que deixaria de existir, mas todo um relacionamento produtivo, gerando um efeito cascata que pode ser altamente disruptivo para a produção.
A justificativa por trás das medidas sobre o Canadá e o México é uma punição pela falta de controle em suas fronteiras. Trump tem acusado sistematicamente ambos os países de não controlarem suas fronteiras de maneira adequada, facilitando a entrada de imigrantes ilegais e drogas nos Estados Unidos. Entretanto, o real motivo parece ser o elevado déficit comercial que os Estados Unidos mantêm com esses países. Trump frequentemente deixa transparecer que, na sua visão, um déficit comercial é equivalente aos Estados Unidos subsidiarem o outro país. Além disso, Trump argumenta que deseja trazer empregos de volta para os Estados Unidos e fortalecer a indústria.
Entretanto, se o objetivo é esse, os efeitos podem ser justamente o oposto do desejado. A perda de eficiência econômica fará com que as empresas americanas tenham maiores dificuldades em criar empregos. Além disso, uma tarifa de importação é equivalente a uma tarifa de exportação, pois ambas são faces da mesma moeda. Se um país tem restrições para exportar para os Estados Unidos, eles terão maiores dificuldades em obter dólares para financiar suas importações de bens americanos. Além disso, o efeito de curto prazo parece ser de apreciar do dólar globalmente, prejudicando ainda mais a competividade das exportações americanas. Finalmente, ao colocar tarifas de 25% sobre México e Canadá e de 10% sobre a China, pode fazer com que o déficit comercial com a China aumente ainda mais, tendo em vista a potencial interrupção na cadeia de suprimentos do NAFTA, direcionando a demanda para a China.


Por fim, deixamos claros que a análise aqui feita não considera eventuais atos de retaliação impostos pelos países atingidos, que já estão sendo declarados pelo México, Canadá e demais países de maneira preemptiva. A imposição de barreiras para as vendas de empresas americanas geraria impactos adicionais na performance econômica, em particular para o setor de tecnologia que tem expandido de maneira robusta internacionalmente.
Já no Brasil, entendemos que o nosso país não se encontra em situação de fragilidade. Até o momento, não foram feitas ameaças diretas ao país, e respingos indiretos – como feitos contra o Brics – parecem pouco prováveis visto que o bloco não possui um substituto crível para o dólar, que foi a motivação alegada por Trump para impor tarifas contra seus membros.
Adicionalmente, mesmo num eventual cenário de tarifas, é pouco provável que as medidas tenham impacto substancial na saúde do setor externo brasileiro: com a alteração da matriz comercial ao longo das últimas duas décadas, fruto da especialização em commodities agrícolas, o país reduziu sua dependência de exportações aos americanos pela metade, e o superávit comercial que existia até meados dos anos 2000 se converteu num déficit crônico que, atualmente, se situa ligeiramente abaixo de um equilíbrio, em comparação com os US$75 bilhões de exportações líquidas feitas ao resto do mundo.

Um possível risco para a economia brasileira seriam os potenciais impactos de segunda ordem, causados por menor crescimento econômico na China e que podem afetar a atividade econômica brasileira. Essa situação, porém, ocorreria numa defasagem maior, e abre espaço para a readaptação da cadeia de produção doméstica contra um eventual desarranjo.