Macroeconomia


Internacional | Setembro 2024

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André Valério

Publicado 01/out1 min de leitura

Resumo

  • O Fed deu início ao tão aguardado ciclo de cortes, cortando os juros em 50bps e projetando mais 50 bps de cortes até o fim do ano. Como já haviam deixado claro, o objetivo nesse momento é evitar uma desaceleração acentuada do mercado de trabalho, à medida que a inflação converge à meta. Porém, mercado de trabalho americano sinaliza continuidade da sua deterioração, o que pode levar o Fed a cortar mais do que o projetado para esse ano;
  • O que poderia dar errado? O pior cenário seria uma recessão, mas, ao se antecipar, o Fed diminuiu esse risco. O segundo pior cenário seria uma retomada da inflação, que poderia impedir o Fed de continuar cortando ou até mesmo voltar a aumentar juros;
  • Como isso poderia ocorrer? Há dois cenários possíveis. No primeiro, o dólar enfraquecido devido ao ciclo de cortes faria a economia americana importar inflação do resto do mundo, mas sem maiores repercussões na economia internacional. No segundo, o ciclo de cortes americano poderia desencadear uma competição por cortes entre os principais bancos centrais, dando início a um novo ciclo inflacionário global.

O ciclo de cortes chegou. E agora?

Como esperado, o Federal Reserve, o banco central americano, deu início ao ciclo de cortes nos juros em sua última reunião, no dia 18. A trajetória da política monetária já estava bastante clara, com o Fed sendo cada vez mais claro que sua preocupação no momento passa a ser o mercado de trabalho.

A inflação americana mantém trajetória consistente de queda, tendo saído de 3,72% no acumulado em 12 meses em agosto de 2023 para 2,5% no acumulado em 12 meses em agosto de 2024. Entretanto, essa trajetória não foi totalmente linear, com o primeiro trimestre desse ano apresentando elevada sazonalidade e fazendo a inflação reacelerar no acumulado em 12 meses, atingindo o pico de 3,48% em março de 2024. O PCE, a medida de inflação oficial a qual o Fed persegue a meta, já está em 2,2% no acumulado em 12 meses, muito próximo da meta e abaixo da própria projeção do Fed para 2024, o que dá ainda maior confiança para a continuidade dos cortes.

Paralelamente, a taxa de desemprego saiu de 3,8% em agosto de 2023 para 4,2% em agosto de 2024, tendo alcançado 4,3% em julho desse ano, o maior valor desde outubro de 2021. Ainda assim, a economia americana adicionou 2.568 milhões de empregos nesse período, indicando uma redução no ritmo de criação de vagas. Mas essa redução indica mais uma normalização do que de uma recessão, uma vez que a economia americana adicionou, em média, 2.3 milhões de empregos no acumulado em 12 meses no período entre a crise do subprime e a pandemia.

Apesar disso, o Fed vê o mercado de trabalho com grande preocupação, com alguma razão, uma vez que há diversos sinais de que a deterioração do mercado de trabalho irá continuar nos próximos meses, inclusive a projeção do Fed é de que a taxa de desemprego encerre o ano em 4,4%, 0,2 ponto percentual acima da atual taxa de desemprego.

Entretanto, é possível que essa projeção seja otimista. O mercado de trabalho americano hoje se caracteriza por ser difícil de encontrar emprego se você está desempregado, mas difícil de perdê-lo, se você for empregado. E a tendência é de que fique cada vez mais difícil de encontrar emprego, seja porque há maior oferta de trabalhadores, seja porque as firmas estão contratando menos e podem até a iniciar demissões significativas. Pesquisadores do Fed de Minneapolis, utilizando microdados da pesquisa que embasa o payroll, encontram evidências de que a taxa de demissão está aumentando consideravelmente nos últimos meses, enquanto a taxa de contratação se mantém enfraquecida. Os dados de abertura de vagas em agosto confirmam uma tendência de enfraquecimento do mercado de trabalho, com a taxa de contratação em 3,3%, consistente com períodos em que a taxa de desemprego acima de 8%, enquanto a taxa de demissão voluntária está no menor patamar desde agosto de 2020, o que sugere uma grande dificuldade em encontrar emprego. Além disso, até a próxima reunião de novembro, teremos a divulgação do payroll referente a setembro e outubro, e é possível que esses dados venham mais fracos que o esperado, devido ao furacão no sul dos Estados Unidos e à greve dos trabalhadores portuários.

Em sua última projeção o Fed sugere que irá cortar mais 50 pontos base até o fim desse ano, posição que foi reforçada por Powell em discurso no dia 30 de setembro, em que ele afirmou que o comitê não está muito inclinado a realizar cortes agressivos, caso a economia mantenha a atual trajetória, o que demandaria mais dois cortes de 25 bps esse ano. Mas aqui a ênfase está em “manter a atual trajetória”. Não acreditamos que esse cenário de cortes de 50 pontos base se manterá caso o mercado de trabalho deteriore ainda mais. Inclusive, membros do FOMC, como Raphael Bostic, já deixaram claro que um eventual payroll abaixo de 100 mil empregos podem os levar a reconsiderar a política monetária. Assim, temos uma probabilidade não desprezível de que o Fed corte sua taxa de juros além do esperado.

Dado esse contexto, o que poderia dar errado? O pior cenário para o Fed seria a economia entrar em recessão e a inflação voltar para a dinâmica pré-covid em que ficava consistentemente abaixo da meta. Ao iniciar o ciclo de cortes antes de uma desaceleração mais intensa da economia, a probabilidade desse cenário diminuiu e à medida que o Fed caminhe com a taxa de juros para seu patamar neutro a probabilidade desse cenário diminui ainda mais.

O segundo pior cenário seria a retomada do processo inflacionário, o que poderia levar a uma pausa no ciclo de cortes e no limite forçar a retomada do ciclo de alta nos juros. Isso poderia acontecer via dois caminhos. No primeiro, o ciclo de cortes nos juros americanos leva a um enfraquecimento global do dólar, fazendo com que a economia americana importe inflação do resto do mundo. No segundo, poderíamos ver um ciclo de corte de juros sincronizado entre as grandes economias, levando a um ciclo de corte “competitivo”, em que cada banco central tentaria ser mais dovish que o Fed justamente para evitar uma sobreapreciação da sua moeda local frente ao dólar, dando início a um novo ciclo inflacionário global. Isso se deve à falta de sincronia entre os ciclos econômicos da economia americana e o resto do mundo, em particular a economia chinesa, com a economia americana relativamente mais forte, levando a um dólar mais forte e uma maior exportação do resto do mundo. Com o ciclo de cortes da economia americana, os bancos centrais dessas economias teriam que ser tão ou mais agressivos que o Fed para manter essa dinâmica. Nesse caso, a economia americana deixa de exportar inflação e importar deflação do resto do mundo e passamos a ter um aumento na demanda agregada a nível global, pressionando a inflação global.

Pode-se argumentar que a China seja a exportadora de deflação seja a exportadora de deflação, uma vez que vivencia uma dinâmica deflacionária. Entretanto, o governo chinês não deseja ver a economia chinesa desacelerando, e anunciou uma variedade de estímulos bastante agressivos na tentativa de reaquecê-la. Apesar disso, não vemos esse pacote chinês sendo efetivo, explicamos o porquê nesse artigo. E do ponto de vista político, o partido chinês deseja manter a empregabilidade elevada na China, e o mercado imobiliário não é mais uma opção para isso devido às diversas distorções que levaram a uma extensa má alocação de capital no setor, gerando uma sobre oferta. Uma alternativa, portanto, seria direcionar esses empregos para a indústria, especialmente a “indústria verde”, algo que faz parte do plano de desenvolvimento de longo prazo do partido comunista chinês. Para tanto, eventualmente, uma desvalorização do yuan será necessária para manter a competitividade das exportações chinesas, especialmente em meio a uma desvalorização global do dólar, o que impediria a China de ser a força deflacionária no mundo.

Esse cenário de cortes de juros “competitivos” parece ganhar força. Setembro foi o mês com o maior afrouxamento monetário global desde a pandemia e como consequência temos visto a oferta global de moeda aumentar nos últimos meses. E esse afrouxamento não se dá à esteira de uma desaceleração global, pelo contrário, o crescimento global se mantém robusto, com os spreads de crédito nas mínimas e os ativos de riscos muito próximo das máximas.

O início do ciclo de cortes nos juros americanos é uma boa notícia, mas com possíveis consequências não antecipadas, podendo intensificar ainda mais uma dinâmica de afrouxamento monetário global. Parte do trabalho do Fed e dos demais bancos centrais é antecipar esses riscos, mas cada um desses bancos centrais tem sua própria função de reação, moldada por suas preferências. Hoje está claro que a preferência do Fed é evitar a qualquer custo uma possível recessão. Em busca desse objetivo, o Fed incorre no risco de reacelerar a inflação, apesar de que, hoje, esse cenário é de baixa probabilidade. Mas como já dizia Guimarães Rosa, quem desconfia fica sábio.


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