Resumo
- O Fed deixa claro que o mercado de trabalho está na direção da política monetária, enquanto a inflação é mera passageira. O objetivo é evitar uma recessão, alcançando o tão almejado pouso suave, garantindo a desinflação da economia ao menor custo econômico possível.
- A década de 90 oferece alguns paralelos para o atual cenário, em particular os ciclos de cortes em 1994-95 e 1998-99. Um desses ciclos foi visto como um grande sucesso, enquanto o outro foi visto como um grande fracasso. Para entender essa dinâmica convém entender o cenário macroeconômico em que cada um desses ciclos estava inserido.
- Os dados da economia americana divulgados após a decisão do Fed não foram reconfortantes para a decisão de cortar 50 pontos base. Isso não quer dizer que essa decisão tenha sido errada, mas definitivamente foi uma decisão com algum grau de risco, dada a dinâmica da economia americana, que adiciona ainda mais incerteza sobre a taxa de juros terminal de ciclo.
Um replay da década de 90?
Os anos 90 estão na moda novamente com a geração Z cada vez mais privilegiando o estilo de roupas, tênis e acessórios usados há mais de 30 anos, inclusive renegando os fones bluetooth, favorecendo os analógicos fones de ouvido com fio, refletindo uma fascinação cultural com a nostalgia de tempos mais simples, pré-digitalização massiva da sociedade.
Mas não é apenas a geração Zque busca inspiração na década de 90. O Fed, o banco central americano, se mostra comprometido a repetir a façanha de 1994-95, quando o tão almejado pouso suave foi alcançado.
Esse objetivo fica claro na decisão recente e nos discursos dos membros do FOMC, em particular, do presidente do Fed, Jerome Powell, que deixou claro que o objetivo do Fed, hoje, é evitar uma deterioração adicional do mercado de trabalho, nem que para isso seja necessário tolerar uma inflação ligeiramente acima da meta.
E os anos 90 apresenta alguns paralelos para o atual cenário, em particular os ciclos de cortes em 1994-95 e 1998-99. Em ambos, o Fed realizou cortes de ajuste da política monetária em torno de 75-100 bps, similar ao que é esperado para esse ano: mais dois cortes de 25 bps até dezembro. Um desses ciclos foi visto como um grande sucesso, enquanto o outro foi visto como um grande fracasso. Para entender essa dinâmica convém entender o cenário macroeconômico em que cada um desses ciclos estava inserido.
Na primeira metade da década de 90, a economia americana estava se recuperando da recessão de 1990-91. A inflação fez pico no fim do ano de 1990 e o Fed iniciou o ciclo de cortes acompanhando a queda da inflação, dinâmica que se manteve até setembro de 1992. Entretanto, a inflação ficou acomodada ao redor de 3%, mesmo patamar da taxa de juros, o que fez com que a taxa de juros real ficasse ao redor de 0%. Esse contexto deixou os membros do FOMC inquietos, com receio de uma reaceleração da inflação, o que levou os seus membros a iniciarem o ciclo de alta preventivamente, uma estratégia inovadora para a época (lembrem-se, estávamos em um período anterior à regra de Taylor).
O Fed iniciou o aperto monetário em dezembro de 1993 com a inflação em 2,8% e a taxa de desemprego em 6,6%, com a última alta ocorrendo em fevereiro 1995. Os resultados foram excelentes, a inflação permaneceu oscilando ao redor de 3% pelos próximos dois anos, a taxa de desemprego manteve sua tendência de queda, que só viria a ser revertida em janeiro de 2001, com a explosão da bolha dotcom, e o PIB real cresceu consistentemente acima de 3% ao ano até o fim da década, não havendo recessão alguma.
Entretanto, a experiência do pouso suave de 1995 não parece ser um bom guia para o contexto atual. Algumas diferenças são marcantes. O Fed iniciou o ciclo de alta preventivamente, em um momento em que a inflação já estava contida, ou seja, o objetivo do Fed não era reduzir a taxa de inflação, mas impedir sua aceleração. A economia não estava sobreaquecida do ponto de vista do mercado de trabalho e, também cabe ressaltar, não houve um choque negativo para a economia no período, ou seja, não houve má sorte, o que permitiu o Fed realizar os ajustes finos necessários na condução da política monetária que permitissem alcançar o feito do pouso suave.
Já o ciclo iniciado em 1998 teve um contexto bastante diferente. Com a inflação consistentemente abaixo de 2,8%, o Fed começou a calibrar a política monetária em julho de 1995, reduzindo a taxa de juros de 6% para 5,25%, patamar que foi mantido até fevereiro de 1997, quando houve nova alta devido a um repique da inflação em dezembro de 1996, momento em que a inflação alcançou 3,4%. A partir desse repique, a inflação voltou a cair, alcançando 1,43% em setembro de 1998, quando o Fed deu início ao ciclo de cortes, em meio ao susto da crise asiática de 1997, tendo impacto significativo sobre as condições financeiras, criando o cenário para o surgimento da bolha dotcom. Com isso, a inflação recuperou ritmo e alcançou 3,76% em março de 2000, forçando o Fed a levar as taxas de juros a 6,5%, acima do pico do ciclo de alta anterior, o que levou ao estouro da bolha e a uma recessão no início dos anos 2000. Na sequência, os novos estímulos criaram as condições que eventualmente culminaram na grande crise financeira de 2007. Portanto, ao cortar os juros antes da hora, o Fed gerou uma sequência de eventos que culminou em duas grandes crises financeiras em menos de 10 anos.
Uma diferença marcante do cenário atual é que a taxa de desemprego hoje está bem abaixo do observado nos dois ciclos, com o agravante da taxa de desemprego atual ser influenciada por questões de oferta de trabalho, com a taxa de participação dos adultos com idade entre 25-54 anos próximo à máxima histórica, além do grande influxo de imigrantes para a economia americana. Portanto, pode-se argumentar que o Fed iniciou o atual ciclo de cortes com um mercado de trabalho mais apertado do que nesses dois ciclos. Ainda assim, vemos os mercados bastante otimistas, com o S&P500 próximo de atingir a marca de 6 mil pontos e a precificação de cortes agressivos na curva de juros.
Portanto, o risco é o Fed estar apagando fogo com gasolina. E os dados divulgados após a reunião de setembro não foram reconfortantes. O payroll referente a setembro indica que a economia americana adicionou 254 mil novos empregos, muito acima do esperado, e com a divulgação dos últimos dois meses sendo revista para cima em 72 mil empregos. Com isso, a taxa de desemprego reduziu para 4,1%, segunda queda consecutiva, sugerindo que o receio de uma recessão quando a taxa de desemprego alcançou 4,3% em julho não passou disso, um receio. Além disso, os salários avançaram 0,4% em setembro, acumulando alta de 4% nos últimos 12 meses e ligando o sinal de alerta para a inflação.
O dado de inflação de setembro também foi pior que o esperado, com alta de 0,2% e o mais preocupante, uma alta de 0,3% no núcleo da inflação, que roda a 3,3% na taxa anualizada, com a inflação de serviços excluindo serviços de energia mantendo-se em patamar elevado, com alta de 0,4% e 4,7% nos últimos 12 meses. E a mesma tendência se percebe no chamado super núcleo, que é o núcleo da inflação de serviços excluindo os gastos com habitação, que avançou 0,4% no mês, alcançando 4,4% nos últimos 12 meses. Portanto, a inflação americana ainda dá sinais de persistência e de que a batalha não está totalmente ganha.
Isso não quer dizer que a decisão do Fed em iniciar o ciclo de cortes com um corte de 50 tenha sido errada, mas definitivamente foi uma decisão com algum grau de risco, dada a dinâmica da economia americana. Ainda assim, acreditamos que o Fed deve entregar os 50 bps de corte prometidos para esse ano, mas a taxa terminal de ciclo começa a ficar rodeada de incertezas e o espaço para cortes em 2025 pode ser mais restrito. Para complicar ainda mais, os dados desse final de ano devem ser pouco informativos sobre o atual estado da economia americana, tendo em vista os eventos atípicos como furacões e greves que assolaram os Estados Unidos nas últimas semanas e que certamente contaminarão os dados econômicos.