Incertezas persistem
Comparado a agosto, setembro tem sido um mês mais previsível, mas longe de ser tranquilo. O cenário internacional continua essencialmente o mesmo. A economia americana se destaca pela resiliência da atividade, enquanto a inflação permanece controlada, apesar de uma leitura mais forte em agosto. Enquanto isso, o Fed se prepara para encerrar o ciclo de alta dos juros. A China continua em situação delicada, mas parece ter se estabilizado frente ao derretimento observado em agosto, com os diversos estímulos implementados pelo governo sendo capazes de estancar a sangria. Porém, a retomada do crescimento não está no horizonte. A Europa também caminha a passos largos para uma desaceleração mais acentuada, aumentando as chances de uma recessão. As condições frágeis da economia europeia não impediram o banco central europeu de elevar, mais uma vez, a taxa de juros, correndo o risco de ultrapassar a linha tênue entre fazer o suficiente e fazer demais.
Por fim, setembro foi marcado pelo rally nos preços internacionais do petróleo. Após diversos meses se mantendo em patamar deprimido, mesmo em meio a sucessivos cortes de produção, o preço do barril de petróleo começa a reagir à oferta reduzida pelos países membros da OPEP, ligando o alerta para novas pressões inflacionárias.
Tais pressões inflacionárias já começam a ser sentidas na economia americana. A inflação de agosto veio acima do esperado, com alta de 0,6% no mês que contou com a variação de 10,6% da gasolina, responsável por metade da inflação observada no mês. Com isso, vemos nova aceleração no indicador acumulado em 12 meses, saindo da mínima de 3% observado em junho para 3,7% em agosto. O chamado super núcleo, que é o núcleo da inflação de serviços excluindo os gastos com habitação, também acelerou, avançando 0,37%, mas manteve tendência de desaceleração no acumulado dos últimos 12 meses, recuando para 4,05%. Por outro lado, o núcleo que exclui alimentos e combustíveis, avançou 0,3% e manteve tendência de queda no acumulado em 12 meses em 4,3%.
Apesar da piora em alguns indicadores, vemos que o resultado da inflação de agosto foi amplamente influenciado por fatores voláteis e, tipicamente, transitórios, que não exigiriam uma resposta imediata por parte da política monetária. Ao mesmo tempo, a atividade americana continua surpreendendo positivamente. Tanto a produção industrial quanto as vendas no varejo vieram melhores que o esperado, e o número de novos pedidos por seguro-desemprego continua em patamar historicamente baixo. O ritmo de contratação no mercado de trabalho tem desacelerado de acordo com o payroll, mas também longe de pintar uma catástrofe.
Esse cenário impõe dificuldades ao Fed. Por um lado, há sinais de que a elevada taxa de juros esteja surtindo efeito, desacelerando a inflação e o crédito, que por sua vez começa a impactar negativamente o mercado de trabalho. Por outro lado, os retornos marginais decrescentes são um grande empecilho. A parte fácil da desinflação já foi realizada, e garantir que o residual seja eliminado irá exigir esforços maiores. A atividade aquecida e as pressões nos preços de energia poderão reacelerar a inflação, exigindo um aperto monetário adicional. Assim, a “escolha de Sofia” do Fed é pausar o ciclo de alta e correr o risco da inflação se tornar persistente, ou continuar o aperto monetário e correr o risco de gerar uma recessão desnecessária.
Apesar de haver motivos para o Fed anunciar a pausa no ciclo de alta, ele não se mostra disposto a anunciar de maneira tão clara, devido ao risco de os mercados precificarem o início dos cortes na curva de juros e relaxar as condições financeiras. Em meio a essa escolha de Sofia, essa não é uma opção que agrada ao Fed. A saída encontrada é pausar sem pausar, ou seja, não aumenta os juros, mas continuar ameaçando a realizar novas altas caso o comitê julgue necessário. É o que os banqueiros centrais chamam de “decisões dependentes dos dados”. E foi justamente essa a postura adotada pelo Fed em sua última reunião. O comitê não aumentou os juros, mas deixou claro que não irá se furtar de aumentá-los novamente caso os dados indiquem essa necessidade. Além disso, os membros do comitê atualizaram suas projeções indicando que esperam que a taxa de juros fique acima de 5% até o fim de 2024. Dessa forma eles pausam o ciclo ao mesmo tempo em que controlam o apetite por risco dos investidores.
Entretanto, a última decisão do Fed não foi uma simples pausa. Nesta reunião o comitê também divulgou suas projeções atualizadas para a economia americana para os próximos anos. Havia a expectativa se o Fed iria alterar suas projeções para a taxa de juros ao final desse ano e a de longo prazo, mas nenhuma delas foi alterada. O comitê ainda antecipa mais uma alta de juros para esse ano, enquanto mantém sua projeção de juros real neutro de 0,5%. As novas projeções do Fed escondem três mensagens importantes. A primeira é que não apenas o Fed deixou de projetar uma recessão, como ele projeta um maior crescimento para 2023 e 2024. Em outras palavras, o cenário base do comitê é de que eles serão capazes de realizar o pouso perfeito. A segunda mensagem é que a taxa de juros de longo prazo não foi revisada para cima, mas foi por pouco. O que ficou inalterado foi a mediana da projeção, mas a medida central e a variabilidade entre as projeções aumentaram, o que significa que há vários membros do comitê mudando a sua visão para a taxa de juros de equilíbrio da economia americana.
A última mensagem é que o comitê projeta taxa de juros reais acima de 1,5% até o fim de 2025. Portanto, são mais dois anos de política monetária
contracionista. A última vez em que isso ocorreu foi em 2006 e 2007, até que a crise do subprime mostrou que o Fed havia apertado demais. Em comparação ao atual período, a economia americana em 2006-07 tinha uma demografia melhor e não tinha as cicatrizes das distorções causadas pela própria crise de 2008 nem tampouco as causadas pela pandemia. Ainda assim, bastaram 27 meses de taxas de juros real acima de 1,5% para que algo relevante quebrasse na economia americana. Dessa vez será diferente?
No ciclo atual, alguns componentes explicam por que não vemos um impacto tão significativo da política monetária contracionista na atividade. Boa parte da dívida das empresas americanas está travada em juros menores do que os atuais e a necessidade de refinanciamento para os próximos anos é pequena. Paralelamente, as famílias também não sentem tanto o aperto, pois a grande maioria do estoque de hipotecas está travado em financiamentos de 30 anos com taxas de 3%, enquanto recebem juros de 5% livre de risco. Além disso, o impulso fiscal observado nos últimos 12 meses na economia americana não foi negligenciável, e tem sido um dos responsáveis por manter a economia aquecida.
Tal cenário leva o Fed a crer que um aperto monetário prolongado é necessário. A grande questão é que as defasagens macroeconômicas devem começar a atuar mais cedo do que tarde e dessa vez não haverá a política fiscal para ajudar, uma vez que o cenário fiscal é cada vez mais complicado e a proximidade da eleição presidencial de 2024 acirra ainda mais a disputa entre os republicanos e democratas, o que tem aumentado a chance de uma nova paralisação do governo federal ao fim de setembro, por falta de recursos. Uma eventual contração fiscal em meio à alta do petróleo pode ser a peça que faltava para derrubar as duas últimas peças do dominó: o mercado de trabalho e o mercado imobiliário.
O mercado de trabalho americano ainda está em patamar robusto, mas dá sinais claros de desaceleração. Em agosto, a economia americana adicionou 187 mil novos empregos, mas manteve a tendência de queda. Os setores mais cíclicos da economia já estão com variação anualizada em terreno negativo, com fechamento de vagas em 8 dos últimos 9 meses. Portanto, o que mantém o mercado de trabalho aquecido são os setores menos cíclicos, como os serviços e o relacionado à habitação, que nos últimos meses tem observado uma retomada apesar de ser tradicionalmente sensível à taxa de juros.
Entretanto, a perspectiva para o mercado de trabalho não é muito positiva. A intenção de novas contrações por parte das pequenas empresas americanas está deteriorando significativamente, e tal movimento é um indicador antecedente da taxa de desemprego em 12 meses à frente, uma vez que a maioria da massa dos empregados trabalha em empresas de porte médio e pequeno. Tais empresas tendem a ser mais alavancadas, necessitando de um crescimento econômico mais forte para ter um bom desempenho, portanto, a política monetária contracionista terá um impacto mais acentuado.
Essa desaceleração no mercado de trabalho pode levar a uma forte correção no mercado imobiliário. A resiliência do mercado imobiliário em meio a elevada taxa de juros é surpreendente. A taxa média de hipoteca de 30 anos não para de aumentar, alcançando o maior valor desde 2000. Entretanto, os consumidores não estão sofrendo as consequências dessa dinâmica, pois a vasta maioria do estoque de hipotecas é de taxa fixa, e a média das hipotecas vigentes está por volta de 3%, enquanto as novas hipotecas estão próximas a 8%. Enquanto isso, a demanda por habitação continua elevada, pois ela é relativamente inelástica à taxa de juros (afinal de contas, as pessoas precisam de um teto sobre suas cabeças). Portanto, vemos um mercado imobiliário aquecido mesmo com as elevadas taxas. Isso só é possível porque o mercado de trabalho continua aquecido então quem tem casa não vende e quem precisa comprar consegue porque tem emprego para arcar com os custos. Logo, uma eventual desaceleração aguda do mercado de trabalho aumentará a oferta de imóveis devido às vendas forçadas, o que causará um efeito dominó na economia, intensificando o impacto negativo.
O que pode ser uma pedra no sapato na economia americana já é uma realidade na China. Apesar de diversos estímulos, o mercado imobiliário chinês continua retraindo. Por exemplo, o ETF CHIR, que investe em dezenas de empresas do setor imobiliário chinês, recuou mais de 10% em setembro. Esse recuo foi intensificado pela notícia de que a Evergrande tem encontrado dificuldades na sua reestruturação de dívida, por conta de uma investigação em uma subsidiária, dentre outros motivos.
O mês de setembro não tem sido tão ruim quanto o de agosto, em parte porque há sinais de que os estímulos fornecidos pelo governo têm sido capazes de estancar a sangria. Tais medidas foram suficientes para estabilizar a bolsa, mas não para reativar o ciclo de crescimento. Em agosto, observamos uma melhora discreta nas vendas do varejo, na produção industrial, enquanto a inflação veio qualitativamente melhor, saindo de uma deflação em julho para uma leve alta em agosto, juntamente com uma demanda por crédito melhor que o esperado.
As medidas implementadas até o momento serão apenas um paliativo. A saída para o declínio que vemos passa por uma política fiscal expansionista, algo que o atual comando do governo chinês não parece disposto a fazer. Enquanto isso, o mercado prefere observar de fora até que tenha sinais claros de que o governo não deixará um dos principais setores econômicos simplesmente implodir.
Na Europa, o BCE surpreendeu os mercados ao anunciar nova alta na taxa de juros na zona do euro, para 4,50%. Essa decisão acontece em meio a uma desaceleração cada vez mais clara das principais economias da zona do euro, em particular a França, e os PMIs Europeus continuam em patamar contracionista.
Ao mesmo tempo, a inflação continua em patamar elevado, mesmo já tendo caído consideravelmente. A inflação europeia acumula alta de 5,3% nos últimos 12 meses, ainda distante da meta de 2%. E foi com esse pano de fundo que o BCE decidiu aumentar a taxa de juros, argumentando uma piora nas projeções para inflação de 2023 e 2024 por parte da equipe econômica, que agora projeta altas de 5,6% e 3,2%, respectivamente, consequência da piora nos preços de energia e da manutenção de pressões inflacionárias. Entretanto, o guidance do comunicado sugere que o banco central está pronto para pausar o ciclo de alta, uma vez que, se mantido por tempo suficiente, terá contribuição decisiva para trazer a inflação de volta à meta. Com isso, entramos em um cenário de taxa de juros elevadas por mais tempo em um momento de desaceleração econômica e pressão nos preços de energia, algo que o continente europeu é altamente dependente, especialmente com a proximidade do inverno.
Um agravante para esse cenário é o mercado imobiliário europeu, que é bem mais sensível às altas nos juros do que o americano. Nos Estados Unidos mais de 90% do estoque da dívida imobiliária é crédito longo com taxa fixa, enquanto na Europa a proporção de empréstimos imobiliários com taxas flexíveis é bem maior. Isso significa que as altas nos juros europeus são sentidas muito mais rapidamente pelos consumidores à medida que a parcela de suas hipotecas aumenta imediatamente, o que retira um bom pedaço da renda disponível da economia. Com isso, as chances de uma recessão na economia europeia são bastante elevadas e a atual dinâmica do preço do petróleo e a proximidade do inverno certamente não irão ajudar.
O banco central japonês (BoJ) também foi controverso. Em sua última reunião de política monetária, o BoJ decidiu não alterar sua política atual, mantendo a taxa de juros em -0,1% e mantendo a política de controle da curva de juros. Mesmo com a inflação acima de 3% e pressões salariais, o BoJ não acha que ainda é a hora de intervir. Com isso, o iene apanha dos mercados. Em setembro o iene desvalorizou quase 2%, se aproximando perigosamente dos 149 ienes por um dólar. No ano já são quase 14% de desvalorização. A grande questão agora é até quando a economia japonesa irá tolerar essa dinâmica. Eventualmente, o BoJ terá que intervir e elevar os juros para quebrar o ciclo vicioso de enfraquecimento do iene e inflação elevada. Quando o BoJ elevar os juros curtos, acreditamos que uma sequência de eventos levará a uma valorização do iene e uma queda na bolsa japonesa. Tendo em vista a dinâmica recente, acreditamos que o BoJ irá defender o iene no patamar de 150, o que abre uma boa oportunidade de compra do iene frente ao dólar, tendo em vista que hoje ele opera por volta dos 149 ienes.