Macroeconomia


Análise | Internacional | Out/23

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André Valério

Publicado 26/out

Incertezas persistem

“Falar do passado é o mais fácil que há, está tudo escrito, é só repetir, papaguear, conferir pelos livros o que os alunos escrevam nos exercícios ou digam nas chamadas orais, ao passo que falar de um presente que a cada minuto nos rebenta na cara, falar dele todos os dias do ano ao mesmo tempo que se vai se navegando pelo rio da História acima até às origens, ou lá perto, esforçar-nos por entender cada vez melhor a cadeia de acontecimentos que nos trouxe aonde estamos agora, isso é outro cantar, dá muito trabalho, exige constância na aplicação, há que manter sempre a corda tensa, sem quebra.”

Nesse trecho do livro O Homem Duplicado, Saramago resume bem a dificuldade em analisar o atual contexto da economia internacional. Nos últimos meses temos observado movimentos de dimensões tectônicas, desafiando verdades absolutas que o mercado sempre teve. E não há garantia de que são mudanças estruturais ou conjunturais, tornando a navegação na alocação de ativos cada vez mais incerta. Por exemplo, o tradicional modelo de alocação de 60% do patrimônio em stocks e 40% em bonds se tornou, nos últimos anos, uma alocação ineficiente, com essas duas classes de ativos altamente correlacionadas.

A quebra do portfólio 60/40 se deve ao movimento recente no mercado de renda fixa. O tradicional apelo desse modelo de alocação se deve à correlação inversa entre bonds e equities. Em momentos de desaceleração ou recessão, o mercado de ações tende a cair, gerando retornos negativos ao portfólio. Mas são justamente nesses momentos em que o Fedcorta juros para estimular a economia, gerando retornos positivos nas posições em renda fixa, compensando as perdas. Entretanto, nos últimos 2 anos temos visto uma correlação positiva entre essas duas classes.

Nos últimos meses, esse movimento se deve à reprecificação do atual cenário macroeconômico. A expectativa de que a economia americana enfrentaria uma recessão em 2023 não aconteceu e, pelo contrário, o crescimento da atividade acelerou. O PIB do 3º trimestre teve alta anualizada de 4,9%, puxado pelo crescimento do consumo das famílias de 4%. O mercado de trabalho também continua bastante aquecido, tendo adicionado 336 mil novos empregos em setembro, mantendo a taxa de desemprego em patamar historicamente baixo, de 3,8%. Para os próximos meses, os PMIs americanos indicam manutenção da atividade em patamar ainda robusto.

Os dados deixam claro que uma recessão ainda não irá acontecer nos próximos meses, logo, não há motivos para antecipar cortes na taxa de juros por parte do Fed. A inflação continua desacelerando, mas de forma mais lenta e acumula alta de 3,7% nos últimos 12 meses, ainda distante da meta de 2%. Isso reforça o cenário projetado há alguns meses pelo Fed de que as taxas de juros terão que ficar elevadas por um longo período até que a plena convergência aconteça. O que estamos observando, portanto, é o mercado de renda fixa finalmente absorvendo essas informações e precificando um cenário em que não há recessão para ajudar a trazer a inflação de volta à meta.

O fato de que o mercado descarta, por ora, uma recessão na economia americana, não quer dizer que ela não irá ocorrer. Paradoxalmente, esse movimento nos juros longos americanos tornam a recessão mais provável, pois configura um aperto adicional nas condições financeiras, auxiliando a política monetária, o que foi reconhecido por Powell, presidente do Fed, em seu último discurso. À medida que as empresas forem renegociando suas dívidas, elas o farão em um patamar muito acima do que o anterior. Boa parte das grandes empresas travaram seus financiamentos a longo prazo em uma taxa muito convidativa nos últimos anos, especialmente entre 2020 e 2021, mas há de se lembrar que as grandes empresas representam uma pequena fração dos empregados americanos. As 7 Magníficas (Google, Meta, Nvidia, Tesla, Amazon, Microsoft, Aaple) empregam pouco mais de 1,6% do total de americanos empregados atualmente. A grande maioria dos empregos são gerados nas pequenas e médias empresas, e essas não têm as mesmas facilidades na hora de contratar empréstimos. Portanto, o aperto irá ter impacto no mercado de trabalho, eventualmente.

Já existem sinais de desaceleração no mercado de trabalho. Apesar de ter adicionado 336 mil empregos, a leitura do payroll deve ser feita com cautela. Esse levantamento é resultado de duas pesquisas, uma a nível da firma e outra a nível domiciliar. O número de empregos adicionados vem da pesquisa da firma e a taxa de desemprego vem da pesquisa domiciliar, por exemplo. Pela pesquisa domiciliar, o número de empregados aumentou em apenas 86 mil. E se ajustarmos a série de empregados da pesquisa domiciliar pelo conceito de payroll, vemos uma destruição de 7 mil empregos em setembro. Isso ajuda a explicar por que a taxa de desemprego ficou estacionada em 3,8%, a máxima dos últimos meses, mesmo com uma adição forte, tendo em vista que a taxa de participação ficou inalterada. Além disso, os salários cresceram a uma taxa de 0,2% no mês, o que anualizado dá 4,2%, um patamar ainda muito elevado. Se consideramos a dinâmica dos últimos 3 meses, os salários crescem a uma taxa anualizada de 3,4%, o que é consistente com a meta de inflação a 2%.

Outro sinal de enfraquecimento do mercado de trabalho vem dos pedidos de seguro-desemprego. À primeira vista, os novos pedidos de seguro-desemprego, aqueles feitos por quem acabou de ser demitido, vieram abaixo do esperado e se mantém em patamar historicamente baixo. Entretanto, quando analisamos os pedidos continuados, ou seja, de renovação do benefício, temos visto resultados piores que o esperado, o que sugere que as demissões estão contidas, mas uma vez demitido, o trabalhador tem encontrado dificuldades em se recolocar.

Os ativos de commercial real estate também são um ponto de atenção, demonstrando alguns sinais de estresse. Com o mercado de trabalho apertado, o poder de barganha está na mão dos trabalhadores. Assim, a maioria das empresas americanas não foi bem-sucedida em retomar a rotina de trabalho pré-pandemia, com o home office ainda prevalecendo. Como consequência, a taxa de ocupação dos imóveis comerciais nos Estados Unidos está bem aquém do observado antes da pandemia.

Essa dinâmica impacta a receita desses empreendimentos e cerca de 1,5 trilhões de dólares em dívidas relacionadas aos CREs irão maturar até 2025, sendo 270 bilhões apenas em 2023. Essas dívidas terão de ser renegociadas em um momento em que a taxa de juros básica da economia americana está acima de 5%.

Portanto, vemos um cenário em que o setor se encontra espremido por custos crescentes e receitas decrescentes, o que pode levar a um aumento na inadimplência. Ao mesmo tempo, investidores podem diminuir seu apetite por novos investimentos ou empreendimentos, reduzindo a demanda por esses imóveis, o que seria intensificado pela contração no crédito por parte dos bancos, à medida que a inadimplência aumenta. Dessa forma, a economia americana pode caminhar para um cenário de forte retração na demanda ao mesmo tempo em que a oferta também aumenta acentuadamente, duas forças que irão atuar na mesma direção, a de redução dos preços desses ativos.

Para a economia como um todo, o risco de um episódio mais grave com os CREs é maior do que no mercado residencial. CREs são muito mais alavancados e os bancos locais e regionais americanos são mais expostos a esses empreendimentos. Do total de empréstimos referentes aos CREs, mais de 66% são detidos pelos bancos pequenos, enquanto essa representação nos empréstimos totais da economia americana é de apenas 36%. Portanto, um aumento do defaultpoderia gerar um episódio semelhante ao observado em março com a quebra do Silicon Valley Bank, mas com o potencial de disseminação devido à exposição dos pequenos bancos.

As incertezas no mercado internacional não se restringem à economia americana. A China também passa por altos e baixos, mas depois de muitos baixos finalmente começamos a ver alguns altos. Em setembro, os dados de atividade econômica mostraram recuperação, com o PIB apresentando crescimento anualizado de 4,9% no terceiro trimestre. Além disso, tanto a produção industrial quanto as vendas no varejo também surpreenderam, crescendo 4,5% e 5,5% na taxa anualizada, respectivamente. A taxa de desemprego também melhorou, recuando de 5,2% para 5%. As medidas adotadas pelo governo chinês recentemente, estão finalmente tendo algum efeito, o que torna a meta de crescimento de 5% para esse ano bastante factível.

O governo anda sobre uma linha tênue. A taxa de desemprego entre os jovens ainda é um problema, a confiança do setor privado está em baixa e toda a tensão geopolítica entre Estados Unidos e China tornam esse cenário ainda mais desafiador, sem falar na desaceleração da demanda global. Mas o grande entrave continua sendo o setor imobiliário. Nas últimas semanas novos eventos mostram que o setor continua frágil, com mais uma grande empresa do setor, a Country Garden, tendo problemas de insolvência, incapaz de pagar uma dívida de 200 bilhões de dólares.

Ainda assim, as medidas tomadas pelo governo chinês parecem que serão suficientes para entregar o prometido, que é um crescimento de 5%. Mas esses pontos de atenção, se não propriamente abordados, podem representar graves empecilhos para o crescimento da economia chinesa nos próximos anos. Cabe ressaltar que a economia e sociedade chinesa são bastante diferentes e uma análise com viés ocidental pode nos levar a conclusões erradas. Feita essa ressalva, são aspectos da economia chinesa que demandam um acompanhamento mais cuidadoso.

Na Europa, a inflação se encontra mais resiliente do que nos Estados Unidos e o aperto monetário é bem mais sentido do que na economia americana, pois o estoque de dívida com juros flutuantes é bem maior. E apesar do banco central europeu indicar que não irá fazer novas altas nos juros, o estoque desse aperto deve continuar pesando sobre a atividade econômica. E isso já é sentido nos indicadores antecedentes. Em outubro, os PMIs das principais economias europeias são amplamente consistentes com uma recessão. Portanto, enquanto o Fed está se preparando para mais uma alta, o BCE pode estar se aproximando do momento de cortar os juros.

No outro extremo, o banco central do Japão nem cogita restringir sua política monetária nesse momento. E essa posição impõe um grande custo para o iene, que se mantém pressionado, tendo ultrapassado o valor de 150 ienes por um dólar, que por muito tempo foi visto como uma barreira não oficial para a moeda, pois sempre que esse patamar é testado havia uma intervenção no mercado de câmbio. Dessa vez foi diferente. De toda forma, a inflação japonesa continua pressionada, mas perdendo força na margem. Ainda assim, o BoJ deverá elevar suas projeções para 2024 e 2025, com a inflação ficando acima da meta de 2%, o que coloca ainda mais pressão sobre a política de controle da curva de juros implementada, com o BoJ dizendo ser capaz de trazer a inflação de volta à meta com uma política monetária acomodativa.

Há ampla expectativa de que o BoJ irá retirar os estímulos que foram implementados ao longo da última década, que causaram diversas distorções relevantes no mercado financeiro japonês. O movimento de normalização da política monetária é delicado, pois há o receio de que possa causar movimentos intensos no mercado financeiro, levando a instabilidade econômica. Além disso, há o receio de que o atual processo inflacionário seja transitório, portanto, há o desejo de esperar até que se tenha maior confiança de que a economia japonesa conseguirá lidar com a desaceleração no resto do mundo sem voltar para uma espiral deflacionária. Enquanto isso, a política de controle da curva de juros fica cada vez mais pressionada, com os investidores demandando retornos maiores devido à melhora da economia e persistência da inflação. Portanto, algo terá que ceder. Nesse momento, quem arca com as consequências é o iene. No próximo dia 31, o BoJ irá se reunir para deliberar sobre sua política monetária e o destino do iene depende do resultado dessa reunião.

A economia internacional já estava difícil de compreender. Temos observado a quebra de correlações históricas entre variáveis que por muito tempo foram usadas como guias. Vemos a maior economia do mundo saindo de uma confusão política para outra, enquanto briga para levantar recursos para financiar duas guerras por procuração. Naturalmente, a eclosão de novos conflitos por si só não é bem-vinda, mas em meio a todo esse contexto, tem a capacidade de tornar o caos ainda maior. Mas não se engane, o caos é apenas uma ordem a ser decifrada.


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