No último dia 20, o banco central americano decidiu manter a taxa de juros inalterada pela sétima reunião consecutiva. Apesar do movimento ser amplamente esperado, havia muita expectativa sobre a comunicação para os próximos passos da política monetária americana, uma vez que essa reunião teve atualizações das projeções dos membros do comitê sobre a economia americana.
O comunicado pós reunião não apresentou mudanças significativas. A mais relevante foi em relação ao mercado de trabalho, que havia dado sinais de moderação no final de 2023, mas vem se mantendo forte, o que sugere que o mercado de trabalho não esteja desacelerando na velocidade desejada pelo comitê. Isso se confirma nas projeções dos membros do FOMC sobre desemprego e atividade, que são consistentes com uma visão de atividade robusta e resiliente.
Outro destaque das projeções foi a expectativa inalterada de, pelo menos, três cortes nos juros em 2024. Entretanto, houve uma revisão na expectativa dos juros para 2025 e 2026, com uma taxa maior do que antecipavam em dezembro. Finalmente, tivemos a primeira revisão da taxa de juros de longo prazo, o que levanta a questão de variação na taxa neutra da economia americana. Apesar de na mediana as projeções ainda indicarem os três cortes para esse ano, convém notar que a média das projeções para a taxa de juros em 2024 aumentou, o que sugere um viés de redução na quantidade de cortes contratados para 2024. Ao mesmo tempo, os membros do FOMC projetam que a inflação só estará efetivamente na meta em 2026, esperando uma inflação maior em 2025.
Uma forma de racionalizar as projeções do FOMC é que seus membros enxergam que a economia esteja a caminho do tão almejado goldilocks, ou seja, aquele ponto ideal em que a economia não está nem aquecida nem desaquecida. O mercado parece comprar essa ideia também, antecipando reaceleração do crescimento da economia sem a presença de grandes sustos inflacionários.
De fato, o cenário macroeconômico corrobora, por ora, essa visão. A atividade econômica está desacelerando frente ao forte ritmo de crescimento observado ao longo do 4º trimestre de 2023, mas longe de apresentar uma desaceleração preocupante. O nowcasting realizado pelo Fed de Atlanta, que tem antecipado de maneira razoável o PIB real, indica um crescimento de momento de 2,1% em taxa anualizada, desacelerando de 4,2% observados no início de fevereiro. Além disso, há sinais de que setores mais cíclicos tem retomado o crescimento, com, por exemplo, o número de construções iniciadas aumentando 10,7% em fevereiro frente a janeiro.
A inflação desacelerou consideravelmente ao longo do segundo semestre de 2023, saindo de 6,4% em 2022 para 3,3% em dezembro. Entretanto, o início de ano indica percalços no caminho, com o núcleo da inflação se mantendo em patamar elevado e dando sinais de reaceleração, especialmente na média móvel de seis meses.
Por um lado, parte dessa aceleração inflacionária se deve a fatores sazonais, mas há sinais de que tais pressões possam ser mais persistentes. Preços ao produtor surpreenderam negativamente em fevereiro, o que sugere uma pressão nos próximos meses para a inflação ao consumidor, revertendo a desinflação de bens vista nos últimos meses, enquanto a inflação de serviços se mantém pressionada, muito em parte devido ao mercado de trabalho ainda bastante apertado. Além disso, observa-se recentemente pressões no preço da gasolina, item que tem grande peso na inflação ao consumidor.
O mercado de trabalho se mantém extremamente dinâmico, com a economia americana tendo adicionado 275 mil empregos em fevereiro e com os salários crescendo a uma taxa anualizada de 4,3%. Por outro lado, a taxa de desemprego aumentou para 3,9%, enquanto outras pesquisas como a nível domiciliar e de pequenas empresas, indicam um cenário menos positivo para o mercado de trabalho, com as pequenas empresas com a menor intenção de contratação desde o estouro da pandemia.
Dado o cenário acima, temos uma situação que não aparenta demandar uma flexibilização urgente da política monetária, pelo contrário. Entretanto, o tom da coletiva de Jerome Powell, após a reunião do último dia 20, foi na direção oposta. O presidente do comitê fez pouco caso da piora no perfil da inflação observada em janeiro e fevereiro, considerando um produto da sazonalidade. Além disso, classificou o aumento na taxa de juros ao fim de ciclo esperada pelos membros do FOMC como algo pouco relevante, ao mesmo tempo em que considera as condições financeiras como sendo restritivas. Finalmente, sinalizou o início da flexibilização do quantitative tightening (QT) a partir da reunião de junho, o que anteriormente era esperado para acontecer apenas em 2025.
Essa postura do Powell chama atenção. Os meses de janeiro e fevereiro são, sabidamente, sazonais, mas, ainda assim, tivemos uma inflação acima do esperado. É possível que seja apenas uma maior variabilidade na sazonalidade, mas pode ser também fruto de uma piora mais resiliente no perfil da inflação. E o trabalho do banqueiro central é justamente gerenciar o risco da inflação, o que inclui reconhecer os possíveis eventos adversos e tomar medidas para se assegurar contra eles, e não minimizar esse risco como sendo algo pouco relevante.
A discussão sobre a taxa de juros neutra da economia é recheada de incertezas e detalhes técnicos que são muito difíceis de mensurar com precisão. Portanto, o banqueiro central, em meio a um processo de desinflação, faz bem em ignorar essa discussão. Por outro lado, é inegável que tanto o PIB real quanto o PIB nominal americano estão crescendo a um ritmo forte, apesar dos juros elevados, em meio a maior gasto público, famílias com menor alavancagem e ganhos de produtividade com inteligência artificial. Novamente, não é de bom tom ignorar o potencial que essas mudanças podem ter tanto na economia quanto na condução da política monetária.
Finalmente, o QT é uma ferramenta adicional da política monetária, retirando parte do excesso de liquidez adicionado pelo quantitative easingao longo da última década. Com a economia robusta e a inflação com risco de reacelerar, por que a pressa em encerrar o QT de maneira tão antecipada? Além disso, apesar da visão de Powell de que as condições financeiras estão restritivas, diversos indicadores de mostram que as condições estão em patamares menos restritivos que nos últimos anos. Observamos diversos mercados alternativos dependente de liquidez, como cripto, em momento de exuberância, com diversos ativos acumulando altas expressivas nesse início de ano e algumas memecoins com retorno de mais de 1500% em 2024, algo incompatível com condições financeiras restritivas.
Powell em sua coletiva teve todas as possibilidades de repetir o tom adotado na reunião de janeiro, em que ele reafirmou a todo momento que a política monetária ainda não havia terminado seu trabalho. Ele poderia inclusive ter mantido o tom do comunicado que foi consideravelmente mais hawkish do que a coletiva.
Isso sugere que Powell está mais sensível ao seu mandato de pleno emprego, se mostrando mais preocupado com o risco de uma elevação abrupta na taxa de desemprego do que com o risco de reaceleração inflacionária. Com isso, temos um cenário mais favorável, no curto prazo, para ativos reais.
Os mercados financeiros não são muito afeitos a bancos centrais tomando risco, como Powell está fazendo agora, portanto, muito provavelmente, veremos isso incorporado na precificação dos ativos, com os agentes atribuindo uma probabilidade maior de que a inflação retorne, o que levaria a uma demanda maior por ativos reais com o intuito de proteção. Ironicamente, isso aumenta a probabilidade da inflação de fato reacelerar, uma vez que a maior demanda por ativos reais irá pressionar os preços de bens e serviços, também.
Powell efetivamente fez uma aposta. Se ele se sair bem, os dados de inflação de janeiro e fevereiro serão apenas fruto da sazonalidade e ele conseguirá estimular a economia sem ter que pagar um preço por isso. Por outro lado, se o tiro sair pela culatra, a postura mais acomodativa poderá adicionar pressão inflacionária no futuro. Nesse caso, o preço pode ser alto demais, com o Fed tendo que retroagir em sua retórica e, no limite, restringir a política monetária além do que seria necessário.