Macroeconomia


Análise | Internacional | Jul/24

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André Valério

Publicado 24/jul5 min de leitura

Resumo

O Fed vive um momento shakespeariano: cortar ou não cortar os juros, eis a questão. O dado de inflação de junho da economia americana foi muito animador e torna o início do ciclo de cortes mais provável. Entretanto, apesar de haver argumentos favoráveis para o corte nos juros, o Fed ainda pode adotar uma cautela maior, esperando novos dados que confirmem a atual tendência. A eleição presidencial pode acrescentar uma nova camada de incerteza nesse processo decisório. Ainda assim, dado o contexto, esperamos que o Fed dê início ao ciclo de cortes em setembro, utilizando a reunião de julho para preparar o mercado para os cortes que estão por vir.

Atualização do cenário americano

A inflação americana teve variação negativa de 0,1% em junho na comparação com maio, acumulando alta de 3% nos últimos 12 meses, o menor valor desde março de 2021. O núcleo da inflação também veio abaixo do esperado, desacelerando no acumulado em 12 meses para 3,3%, o menor valor desde abril de 2021. Foi um resultado positivo, com a inflação de serviços perdendo força, assim como a de habitação, que tem sido uma pedra no sapato no atual processo de desinflação.

Com o resultado melhor que o esperado, reforçando a tendência de desinflação dos últimos 3 meses e reduzindo, por ora, os riscos de uma reaceleração inflacionária, o mercado passou a apostar fortemente que o ciclo de cortes de juros terá início na reunião de setembro. O próprio comitê, personificado em seu presidente Jerome Powell, já começa a dar sinais de que o momento de inflexão na política monetária se aproxima. Portanto, o Fed vive um momento shakespeariano: cortar ou não cortar, eis a questão.

Por que o Fed deveria cortar os juros?

Apesar da inflação estar persistentemente ao redor de 3% no acumulado em 12 meses desde junho do ano passado, ainda distante do centro da meta de 2%, existem evidências de que um relaxamento monetário seja apropriado.

A economia americana tem se mostrado bastante resiliente em meio à elevada taxa de juros, mantendo crescimento robusto e com mercado de trabalho bastante aquecido. Entretanto, essa resiliência pode estar com os dias contados. Há sinais de enfraquecimento do mercado de trabalho, com a taxa de desemprego alcançando 4,1% em junho, maior valor desde novembro de 2021 e ficando bem próxima de acionar a Regra de Sahm, uma regularidade empírica em que sempre que a média móvel de 3 meses da taxa de desemprego fique 0,5 ponto percentual acima da mínima da mesma média móvel dos últimos 12 meses, uma recessão acontece na sequência. Os pedidos de seguro-desemprego estão em tendência de alta, especialmente os pedidos continuados, o que sugere que os desempregados têm encontrado cada vez mais dificuldades em se recolocar no mercado de trabalho. Boa parte do impacto do aperto monetário no mercado de trabalho se deu através da destruição de novas vagas e não da destruição de empregos. Entretanto, essa dinâmica já está próxima de se exaurir o enfraquecimento do mercado de trabalho tende a se traduzir em destruição de empregos nos próximos meses, caso o aperto monetário persista.

Os dados de atividade, em geral, apontam para uma demanda enfraquecida na margem. Com isso, devemos observar a continuidade da desaceleração do PIB que já foi menor que o esperado no 1o trimestre desse ano. A estimativa em tempo real do Fed de Atlanta sugere crescimento de 2,5% para o PIB do 2o trimestre, uma queda considerável do pico de 4,3% estimado no início do trimestre.

Além disso, vemos sinais de que setores mais cíclicos da economia americana começam a encontrar resistências para manutenção do seu crescimento, como é o caso do mercado imobiliário. Com o aperto monetário iniciado em março de 2022, o custo de se financiar um imóvel nos Estados Unidos cresceu de tal forma que se tornou proibitivo para uma grande parcela da população. Entretanto, a demanda por moradia é relativamente inelástica, o que direcionou a demanda para imóveis de aluguel, o que levou a um aumento considerável na oferta de imóveis multifamily desde meados de 2021. Entretanto, mais recentemente, a construção de novas casas está colapsando, especialmente as multifamily, ao mesmo tempo em que o preço médio dos imóveis aumentou consideravelmente, assim como o estoque existente de imóveis. No atual ritmo de vendas, o inventário de imóveis existentes seria esgotado em 3,7 meses, maior valor desde maio de 2020.

O mercado imobiliário parece ser o que mais sofre nesse momento com as elevadas taxas de juros. De fato, enquanto o Fed estava aumentando os juros, entre março de 2022 e julho de 2023, tanto o investimento fixo residencial quanto o emprego em construção residencial sofreram bastante, só voltando a crescer quando o Fed parou de aumentar os juros e o ritmo de crescimento do PIB nominal foi mais que suficiente para compensar o efeito negativo dos juros elevados e permitir uma retomada do setor. Entretanto, com o PIB nominal perdendo força nos últimos meses, a tendência é de deterioração do setor imobiliário, podendo transbordar para outros setores da economia real.

Apesar do Fed ter um mandato duplo e do Powell ser particularmente sensível à desaceleração econômica, no fim do dia é o comportamento da inflação que irá pautar o início do ciclo de cortes. Como mencionado, as últimas três leituras da inflação americana contribuíram para mostrar que o processo de desinflação está em linha com o processo de convergência à meta. Para os próximos meses, a perspectiva é positiva, pois um dos grandes entraves para a convergência da inflação é justamente o comportamento da inflação de habitação.

Habitação é o item com maior peso no índice e, por razões metodológicas, é um indicador bastante defasado da situação corrente dos aluguéis. Além dos aluguéis pedidos nos imóveis disponíveis para locação, o indicador de habitação também considera o custo equivalente ao aluguel dos imóveis habitados por seus proprietários (em inglês, Owner’s Equivalent Rent (OER)), que é uma medida um tanto quanto subjetiva. E o índice de habitação considera o estoque dos últimos 12 meses da inflação de aluguel, portanto, há uma persistência elevada nesse componente, que se retroalimenta na percepção dos proprietários dos imóveis ao computarem seu OER. Entretanto, o que se vê é os novos contratos de aluguéis rodando em patamares muito abaixo do observado no índice oficial de inflação, portanto, a tendência é de forte desaceleração na inflação de habitação nos próximos meses, à medida que esses novos aluguéis forem ganhando peso no cálculo da inflação de aluguel do CPI.

Por que o Fed não deveria cortar os juros?

O principal motivo que poderia levar o Fed a não cortar a taxa de juros nesse momento é o fato de que a inflação está persistentemente acima de 3% no acumulado em 12 meses e perdeu o ímpeto desinflacionário após os ganhos fáceis vindos da normalização das cadeias globais de produção.

Ao mesmo tempo, a atividade econômica continua em patamar robusto, mesmo com os sinais recentes de desaceleração. Isso leva muitos analistas a questionarem se a atual política monetária é restritiva o suficiente, o que, em caso negativo, estaria associado a uma taxa de juros neutra maior que o que se pensava anteriormente.

A taxa de juros neutra é aquela que nem acelera nem desacelera a inflação e está associada ao equilíbrio econômico de longo prazo. É uma figura quase mitológica da teoria econômica, impossível de se observar na realidade, mas central para a condução da política monetária.

Boa parte daqueles que advogam que o Fed não deveria cortar os juros, vislumbram que a taxa de juros neutra da economia americana aumentou após a pandemia. Portanto, para se ter uma política monetária realmente restritiva, a taxa de juros deveria ser maior. Dado que não se observa a taxa de juros neutra, pautar o debate da política monetária ao redor do argumento de que ela aumentou é perigoso.

Outro ponto importante na questão de ser cortar ou não a taxa de juros são as evidências históricas no combate aos processos inflacionários. Um estudo realizado pelo Fundo Monetário Internacional, em que os autores analisam cem episódios inflacionários dos últimos 50 anos ao redor do mundo, encontra evidências de que apenas 60% dos episódios inflacionários foram “resolvidos” dentro de 5 anos, e que mesmo nos casos bem- sucedidos, a batalha durou, em média, 3 anos para ser vencida. Dentre os 40% dos episódios malsucedidos, boa parte contou com uma “celebração” prematura, quando a inflação diminuiu inicialmente, apenas para reacelerar na sequência. Essas evidências são reforçadas por um artigo recente da Christina Romer e David Romer, que analisando os episódios de desinflação da economia americana, o grau de comprometimento do Fed e sua tolerância a impactos negativos na atividade são fundamentais para episódios bem-sucedidos de desinflação. Nesse caso, o incentivo aos bancos centrais é adotar uma postura mais cautelosa em relação ao início dos cortes nos juros.

Finalmente, as chances de um novo mandato para Donald Trump aumentaram nas últimas semanas. Não é segredo que Trump é um

grande defensor de tarifas comerciais, em particular sobre os produtos chineses. Ao mesmo tempo, o candidato propõe reduzir o imposto de renda, utilizando as tarifas para compensar a perda de receita. De acordo com o Congressitional Budgedt Office, os EUA arrecadam anualmente US$100 bilhões com tarifas comerciais. Sob a política proposta por Trump, essa receita aumentaria, mas não faria nem cócegas no atual déficit público americano, que deve encerrar o ano de 2024 em US$2 trilhões. Portanto, se o Trump for eleito e implementar o seu programa econômico, o aumento nas tarifas pode ser um choque negativo de oferta na economia americana e podemos ver uma aceleração inflacionária na economia americana no curto prazo.

Como a indústria americana não consegue produzir a um custo tão baixo quanto os bens importados, o aumento nas tarifas como propõe Trump, pode levar a um aumento no custo para os consumidores americanos. Soma-se a isso a esperada deterioração fiscal, e temos uma combinação que reduziria o espaço para cortes nos juros americanos.

O dono da gaita é quem diz em que tom ela vai tocar

Em se tratando de bancos centrais, um ditado antigo ainda é valido: don’t fight the Fed. Portanto, é essencial entender o que o Fed deseja fazer. Nesse sentido, Powell tem sido claro sobre o que ele deseja ver antes de iniciar o ciclo de cortes nos juros: a continuidade de bons dados de inflação ou um enfraquecimento do mercado de trabalho para iniciar o ciclo de cortes. Os últimos meses tem apresentado uma combinação desses fatores, com três bons resultados de inflação e o mercado de trabalho se enfraquecendo, com aumento na taxa de desemprego.

O atual cenário elimina a possibilidade de um corte já na reunião de julho. Até a reunião de setembro, haverá mais duas divulgações de dados de inflação e duas divulgações de dados de emprego. A continuidade das tendências atuais será determinante para o início do ciclo de cortes, o que vai em linha com que tem sido dito pelos membros do Comitê, que tem afirmado que o balanço de riscos da inflação está pendendo para riscos para a atividade econômica em se manter os juros no atual patamar. Resta a saber a influência das eleições sobre as decisões do Comitê. Dada sua independência, não esperamos que o Fed se deixe contaminar por isso, mesmo com declarações recentes de Trump demandando que Powell não corte os juros antes das eleições. Além disso, como expusemos, um eventual segundo mandato de Trump tem potencial inflacionário, o que poderia ensejar uma postura mais cautelosa do Fed desde já.

Entretanto, as boas práticas na condução da política monetária determinam uma boa dose de gradualismo na presença de elevada incerteza sobre o impacto inflacionário de um determinado choque, havendo apenas duas exceções: i) quando o banco central não tem certeza sobre os principais determinantes da inflação; ii) quando enfrentam um choque incerto, mas muito negativo de demanda. Em ambos os casos, uma resposta agressiva é desejável para manter as expectativas inflacionárias bem ancoradas (caso i)) ou para evitar o zero lower bound (caso ii)). Nenhuma das duas hipóteses se aplica ao caso Trump. Sendo assim, dado o atual contexto econômico, a incerteza sobre o governo Trump não é suficiente para impedir que o Fed traga a política monetária para um nível mais balanceado, lidando com os eventuais choques inflacionários à medida em que forem surgindo, de maneira gradual. Sendo assim, esperamos que o Fed dê início ao ciclo de cortes na reunião de setembro.


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