Os economistas do Fundo Monetário Internacional (FMI) realizaram, recentemente, um estudo em que analisam cem episódios inflacionários dos últimos 50 anos ao redor do mundo. Os autores documentam que apenas 60% dos episódios inflacionários foram “resolvidos” dentro de 5 anos, e que mesmo nos casos bem-sucedidos, a batalha durou, em média, 3 anos para ser vencida. Dentre os 40% dos episódios malsucedidos, boa parte contou com uma “celebração” prematura, quando a inflação diminuiu inicialmente, apenas para reacelerar na sequência.
O breve resumo acima parece familiar. Na última semana tivemos a divulgação do dado de inflação para a economia americana em janeiro e o resultado foi bem acima do esperado, com a inflação de serviços reacelerando, assim como o núcleo e o super núcleo.
Ao mesmo tempo, a economia americana ainda dá sinais de robustez. O payroll de janeiro indicou a criação de 353 mil novas vagas de emprego, muito acima do esperado. E chamou atenção no resultado o forte crescimento dos salários, que avançaram 0,6% em janeiro, acumulando alta de 4,5% nos últimos 12 meses, patamar acima do observado em dezembro e inconsistente com a meta de inflação de 2%. Mais preocupante ainda é o comportamento dos salários na média móvel de 3 meses anualizada, que saltou para 5,4%, indicando tendência de alta.
Os dados recentes de emprego e inflação nos Estados Unidos diminuíram a euforia pelo corte de juros que tomou conta do mercado após a reunião do FOMC de dezembro, restando apenas a euforia por inteligência artificial. Apesar disso, o mercado não antecipa uma segunda onda inflacionária, o que, caso ocorra, pegaria muitos investidores desprevenidos. Por enquanto o mercado lê esses dados como um percalço no meio do caminho, servindo apenas para reprecificar os cortes nos juros, como mostra a curva de juros americana.
Quão preocupados deveríamos estar com o atual repique inflacionário? Para responder a essa pergunta, o estudo do FMI é um bom guia. Ao analisar a centena de episódios inflacionários, os autores identificaram 7 fatos estilizados comuns a eles: i) inflação é um fenômeno persistente, especialmente após um choque em termos de troca; ii) a maioria dos episódios inflacionários não resolvidos envolveu “comemoração” antecipada; iii) países que domaram o episódio inflacionário tinham política monetária restritiva; iv) implementaram a política monetária contracionista de maneira mais consistente ao longo do tempo; v) evitaram forte depreciação da taxa de câmbio nominal; vi) tinham menor crescimento nominal dos salários; vii) e tiveram menor crescimento no curto-prazo, mas não observaram menor crescimento num prazo de cinco anos.
Analisando esses 7 fatos estilizados à luz do atual contexto da economia americana, percebe-se algumas sobreposições. O atual processo inflacionário teve início por volta de fevereiro de 2021, portanto, prestes a completar 3 anos, o período médio de duração. Ainda assim, a inflação não retornou totalmente ao nível anterior ao início do episódio. Mas a atual dinâmica já foi suficiente para levar a uma comemoração antecipada, principalmente por parte do mercado que realizou um forte rally ao fim de 2023, muito em parte na antecipação do início do ciclo de cortes, uma vez que, na visão de muitos, a inflação já havia sido vencida.
Em termos da condução da política monetária, o Fed implementou a política monetária mais agressiva das últimas décadas, elevando a taxa de juros em 500 pontos base em 16 meses, e mantendo os juros nesse patamar elevado nos últimos 6 meses. Entretanto, pode-se argumentar que a política não é restritiva o suficiente, tendo em vista que a atividade e o mercado de trabalho não se mostram muito sensíveis à elevada taxa de juros. E aqui entra o comportamento do Tesouro americano que contribuiu para mitigar parte do efeito contracionista da política monetária. Além disso, a baixa sensibilidade da atividade econômica aos juros elevados, levanta a questão de que a taxa de juros neutra da economia americana possa ter aumentado, em parte por conta do elevado déficit fiscal, o que tornaria a política monetária no atual patamar pouco restritiva.
Finalmente, como já discutido, a economia americana não tem observado um menor crescimento nominal dos salários, pelo contrário, os números mais recentes apontam para uma reaceleração, enquanto o mercado de trabalho permanece historicamente apertado. Tampouco observamos uma desaceleração acentuada da atividade no curto prazo. Desde o início do ciclo de aperto monetário, em março de 2022, o PIB americano manteve crescimento robusto, tendo crescido 2,1% em 2022 frente a 2021 e 2,5% em 2023 frente a 2022.
Outro fator a ser considerado são as condições financeiras. Desde o fim da pressão sobre os títulos americanos em outubro que elas têm se tornado consistentemente mais frouxas, atingindo o menor patamar em 12 meses após a reunião do FOMC em dezembro e se mantendo nesse patamar desde então. Esse movimento tem a capacidade de manter o crescimento nominal da economia e o mercado de trabalho apertado. Enquanto isso, o mercado precifica que a inflação continuará cedendo, ou seja, um cenário perfeito de Goldilocks.
Ademais, observa-se sinais de uma retomada cíclica na economia americana. Isso já se nota nos dados de emprego do payroll, quando analisamos o ritmo de criação de vagas por setor. É razoável considerar os setores de construção e manufatura como sendo cíclicos e os de construção residencial, manufatura, transportes e trabalhadores temporários como muito cíclicos. Olhando para os dados mais recentes, vemos uma clara retomada no ritmo de crescimento das vagas, especialmente nos últimos 3 meses, com esses dois grupos crescendo a uma taxa anualizada de 2% e 1%, respectivamente, após passar todo o ano de 2023 em declínio. Paralelamente, os indicadores antecedentes também sugerem uma retomada no ciclo. A razão entre as novas ordens e o estoque da manufatura antecipa o desempenho do setor em um mês, e nesse momento, ele aponta para uma recuperação do setor.
Em meio a esse cenário, o Fed parece confiante em atingir o tão almejado pouso suave. Isso fica claro em declarações de membros do comitê que frequentemente fazem paralelo com o ciclo que culminou no pouso suave de 1995, até o momento o único pouso suave perfeito na história da economia americana.
Na primeira metade da década de 90, a economia americana estava se recuperando da recessão de 1990- 91. A inflação fez pico no fim do ano de 1990 e o Fed iniciou o ciclo de cortes acompanhando a queda da inflação, dinâmica que se manteve até setembro de 1992. Entretanto, a inflação ficou acomodada ao redor de 3%, mesmo patamar da taxa de juros, o que fez com que a taxa de juros real ficasse ao redor de 0%. Esse contexto deixou os membros do FOMC inquietos, com receio de uma reaceleração da inflação, o que levou os seus membros a iniciarem o ciclo de alta preventivamente, uma estratégia inovadora para a época (lembrem-se, estávamos em um período anterior à regra de Taylor).
O Fed iniciou o aperto monetário em dezembro de 1993 com a inflação em 2,8% e a taxa de desemprego em 6,6%, com a última alta ocorrendo em fevereiro 1995. Os resultados foram excelentes, a inflação permaneceu oscilando ao redor de 3% pelos próximos dois anos, a taxa de desemprego manteve sua tendência de queda, que só viria a ser revertida em janeiro de 2001, com a explosão da bolha dotcom, e o PIB real cresceu consistentemente acima de 3% ao ano até o fim da década, não havendo recessão alguma.
Entretanto, a experiência do pouso suave de 1995 não parece ser um bom guia para o contexto atual. Algumas diferenças são marcantes. O Fed iniciou o ciclo de alta preventivamente, em um momento em que a inflação já estava contida, ou seja, o objetivo do Fed não era reduzir a taxa de inflação, mas impedir sua aceleração. A economia não estava sobreaquecida do ponto de vista do mercado de trabalho e, também cabe ressaltar, não houve um choque negativo para a economia no período, ou seja, não houve má sorte, o que permitiu o Fed realizar os ajustes finos necessários na condução da política monetária que permitissem alcançar o feito do pouso suave.
A situação hoje não tem muita semelhança com o ciclo de 1994-95. O Fed está atualmente na “última milha” do processo de desinflação, com a inflação ainda acima da meta. O mercado de trabalho está historicamente apertado e a economia dá sinais de aceleração. A margem de erro no atual contexto é muito menor.
Ao almejar o pouso suave, o Fed corre o risco de mirar em um alvo e acertar em outro, muito pior. Com a inflação consistentemente abaixo de 2,8%, o Fed começou a calibrar a política monetária em julho de 1995, reduzindo a taxa de juros de 6% para 5,25%, patamar que foi mantido até fevereiro de 1997, quando houve nova alta devido a um repique da inflação em dezembro de 1996, momento em que a inflação alcançou 3,4%. A partir desse repique, a inflação voltou a cair consistentemente, alcançando 1,43% em setembro de 1998, quando o Fed deu início ao ciclo de cortes. Entretanto, o ciclo de cortes coincidiu justamente com a reaceleração da inflação, que alcançou 3,76% em março de 2000, forçando o Fed a levar as taxas de juros a 6,5%, acima do pico do ciclo de alta anterior.
A história nem sempre se repete, mas ela é um bom guia para o futuro. O grande risco para a política monetária americana hoje é a reaceleração da inflação. Há alguns sinais que demandam cautela nesse sentido e o Fed se mostra mais reticente depois da reunião de dezembro, enfatizando que o risco de cortar cedo demais supera, nesse momento, o risco de manter o aperto monetário por tempo demais. Entretanto, o guidance mais dovish da reunião de dezembro teve suas consequências, o que pode culminar em uma inflação mais pressionada no primeiro semestre de 2024. Nesse contexto, se o Fed ceder às diversas pressões para cortar os juros, o remédio pode ser bem mais amargo à frente.