Tudo ao mesmo tempo em todo lugar
A economia chinesa decepciona mês após mês. Em julho, os dados de produção industrial e varejo vieram muito piores que o esperado, com declínio na atividade acompanhado de deflação ao consumidor. A cada divulgação econômica fica mais claro que a China está de fato em uma recessão de balanço, hipótese que foi levantada por nós em relatório especial sobre a China. O que vemos hoje não é uma surpresa ou uma crise que surgiu do nada. É o resultado de uma longa sequência de eventos e a confluência de diversos fatores, incluindo fatores exógenos como a crise do subprime em 2008 e a pandemia em 2020.
A China vivenciou um crescimento acelerado na década de 80, mas de forma desordenada. Esse processo foi acompanhado de queda nas receitas fiscais, inflação elevada e pressões sociais e políticas. Em 1994, o governo chinês realizou reformas fiscais e monetárias. A reforma fiscal centralizou as receitas governamentais, equilibrando o orçamento de Pequim, enquanto esvaziou o orçamento dos governos locais. A reforma monetária tornou possível a conversibilidade do yuan pela primeira vez, o que abriu o caminho para os investimentos diretos estrangeiros, sendo posteriormente um grande facilitador do crescimento chinês via exportações observado nos 15 anos subsequentes, que se encerrou abruptamente com a crise de 2008. Como consequência, as exportações caíram em 2008 e 2009, com alguns setores nunca recuperando seu nível de exportação pré-crise. Nesse período, milhões de empregos foram perdidos em meio ao processo de offshoring desencadeado.
Mesmo assim, a China conseguiu evitar a recessão em 2008/09. Tal feito foi alcançado através de um enorme pacote de estímulos que custou US$586 bilhões, aumentando gastos fiscais, investindo em grandes projetos de infraestrutura e oferecendo crédito direcionado a setores considerados fundamentais, como o imobiliário. Ao mesmo tempo em que ajudou a evitar a recessão, o pacote também ajudou a inflacionar o preço dos ativos, especialmente do setor imobiliário. De fato, em 2011, pelo menos 70% da receita dos governos locais era oriunda de renda imobiliária (na China, todo terreno urbano é de propriedade do governo chinês e os projetos imobiliários obtém uma permissão para explorar o terreno em troca do pagamento de uma licença). Além disso, há indícios de que 60% da riqueza das famílias estava atrelada ao setor imobiliário em 2011, o que é um valor excessivamente alto. Para efeito de comparação, no auge da bolha imobiliária americana, a proporção da riqueza das famílias atrelada ao setor imobiliário era de 30%.
Durante a pandemia, o governo chinês implementou a política de tolerância zero contra a covid, que teve como foco as empresas, em detrimento das famílias. O governo adiou a coleta de impostos, prolongou a dívida das empresas e forneceu financiamento direto. Os consumidores, por outro lado, foram menos ajudados, o que fez com que aumentassem suas poupanças para criar uma reserva de emergência. Em 2021, a bolha imobiliária estourou com a quebra da gigante imobiliária Evergrande, o que agravou ainda mais a situação das famílias chinesas, que viram sua riqueza diminuir consideravelmente.
A taxa de desemprego entre jovens chineses ultrapassa 20%, o que força os jovens a continuarem morando com os pais, sem contribuir com as finanças familiares, adicionando outro motivo para aumento da poupança e da contenção de gastos além de potencial distensão social, o que levou o governo chinês a parar de divulgar a estatística de desemprego entre os jovens, com o argumento oficial de que a metodologia é falha e irá retomar a divulgação assim que a metodologia for confiável.
Nesse contexto, uma saída seria um pacote de estímulos similar ao observado em 2008/09, injetando dinheiro diretamente nas famílias e empresas, eliminando as dívidas ruins do mercado imobiliário, salvando os shadow banks ilíquidos, impulsionando a demanda agregada e evitando a desaceleração econômica. Também poderia continuar a impulsionar o crescimento de setores de alto valor adicionado como tecnologia limpa, carros elétricos, inteligência artificial e e-commerce. Mas essa alternativa poderia custar os objetivos de longo prazo do partido chinês, que passa por desafiar a hegemonia internacional da economia americana.
Além disso, um pacote de estímulos massivo poderia inflacionar ainda mais as bolhas financeiras na China, desviando recursos do consumo e de investimentos mais produtivos, tornando mais difícil e mais custoso eventuais novos estímulos à frente. O governo chinês parece estar ciente desses riscos e se mostra reticente em prover os estímulos necessários. No contexto descrito aqui, uma desvalorização do yuan poderia ser benéfica para a economia chinesa, impulsionando as exportações.
Até o momento, o governo tem adotado medidas com o intuito de impulsionar a demanda interna, facilitando o crédito e diminuindo as taxas de juros. Mas a diminuição das taxas de juros em um momento em que os Estados Unidos estão com os juros elevados apenas enfraquece ainda mais o yuan. A economia chinesa possui um sistema de câmbio flexível “sujo”, em que a taxa de câmbio só é permitida oscilar em determinados intervalos, pré-determinado pelo governo. Nesse momento, o banco central chinês está queimando suas reservas na tentativa de defender o yuan em um momento em que eles deveriam aceitar uma desvalorização cambial de bom grado. Como consequência, eles estão se desfazendo dos seus dólares estacionados em títulos do tesouro americano.
Esse movimento por parte da China explica parcialmente por que estamos observando um rally nos juros de 10 anos americanos. A China é uma das maiores credoras do Tesouro americano, e ao se desfazer dos seus títulos para defender o yuan ela coloca pressão sobre as taxas americanas.
Mas isso não dá conta da história toda. O contexto econômico da economia japonesa também contribui para esse cenário. Depois de longos anos, a economia japonesa finalmente observa alguma inflação. Apesar disso, o banco central japonês (BoJ) não dá sinais de que irá aumentar juros para combater o processo inflacionário. Por conta do elevado diferencial de juros entre as economias japonesa e americana, o iene desvalorizou acentuadamente ao longo de 2022 e 2023. Ao mesmo tempo, o BoJ tem uma política de controle da taxa de juros dos títulos de 10 anos do tesouro japonês, que recentemente foi alterada para permitir que a taxa de juros desses títulos chegue até no máximo 1%, ao invés do antigo limite de 0,50%.
Dessa forma, descontados os custos de hedge cambial, não é atrativo para o poupador japonês alocar seu capital nos títulos americanos quando comparado ao retorno dos títulos japoneses. Juntamente com a China, o Japão é um dos grandes credores do tesouro americano e esse movimento retira demanda pelos títulos americanos em um momento em que há elevada oferta desses títulos, pois além da venda por parte dos chineses há também a emissão de novos títulos por parte do tesouro americano para recompor o colchão de liquidez que foi exaurido em meio à polêmica do teto da dívida americana, que também contribuiu para esse cenário ao levar à diminuição do rating da dívida soberana americana no início do mês, aumentando o prêmio de risco dos títulos americanos.
Por fim, a economia americana tem surpreendido até o analista mais otimista, com a produção industrial e o varejo em julho apresentando ganhos acima do esperado. O mercado de trabalho não esfriou e a taxa de desemprego continua em patamar historicamente baixo, em 3,5%. Ao mesmo tempo, a inflação desacelerou consideravelmente, alcançando 3,2% no acumulado dos últimos 12 meses em julho. Com isso, a narrativa de soft landing ganha força, se traduzindo na expectativa de que juros maiores por mais tempo serão necessários para garantir a convergência da inflação à meta de 2%, uma vez que, na visão atual do mercado, não teremos mais a “ajuda” da recessão.Portanto, essa combinação de fatores explica o rally nos títulos de 10 anos da economia americana.
A grande questão a ser feita é até quando a economia americana aguenta esse nível de juros? Por um lado, alguns analistas já enxergam a possibilidade de uma mudança estrutural, levando a uma taxa de juros de equilíbrio maior. Isso seria resultado de uma perspectiva de mais gastos fiscais, seja por questões de defesa nacional, seja por mudança no perfil do eleitorado que passará a exigir maiores gastos sociais nos próximos anos. Com isso, não se descarta que a inflação possa crescer à longo prazo em um ritmo mais acelerado, por exemplo a 2,5% ao ano. Entretanto, essa visão é influenciada pelo atual contexto em que uma taxa de juros de 5,50% ainda não foi capaz de induzir uma desaceleração acentuada na economia.
Porém, essa é uma visão um tanto quanto míope do contexto geral. Os últimos 15 anos da economia internacional têm sido completamente atípicos. A resposta à crise do subprime criou as condições para que as economias desenvolvidas convivessem com excesso de liquidez e taxas de juros zeradas. Essa é uma distorção massiva que não pode ser ignorada. Com a pandemia, as águas do cenário econômico internacional ficaram ainda mais enlameadas, como detalhamos em nosso último relatório. De fato, as defasagens macroeconômicas estão bem mais longas e um exemplo disso é que o atual ciclo de aperto monetário ainda não teve grande impacto no custo financeiro das empresas, uma vez que boa parte da dívida dessas empresas vencerá apenas depois de 2030 e foram adquiridas em tempo de taxas de juros próxima a zero porcento.
Há diversos sinais de que o aperto monetário tem se transmitido para a economia real. A inadimplência no cartão de crédito entre os consumidores americanos está em tendência de alta, alcançando no segundo trimestre de 2023 o maior valor desde 2012. Os bancos têm apertado as condições de crédito de maneira significativa, com 51% dos bancos americanos reportando que estão reduzindo a oferta de crédito para as empresas, maior valor desde o terceiro trimestre de 2020. Isso vale para os consumidores, com 36% dos bancos reportando que estão apertando as condições para empréstimos via cartão de crédito, também o maior valor desde o terceiro trimestre de 2020. A taxa média de hipoteca de 30 anos está em 7,60%, maior valor desde o terceiro trimestre de 2000, tendo subido mais 400 pontos base em pouco mais de um ano e meio.
Como consequência, a demanda por novas hipotecas alcançou o menor valor desde 1995. Como nos Estados Unidos a vasta maioria das hipotecas é feita através de uma taxa fixa, o comprador marginal está deixando de comprar novos imóveis e quem já tem uma hipoteca está relutante em trocar de imóvel, reduzindo a oferta de casas existentes. O que se tem visto é a demanda por habitação sendo atendida pela construção de novos imóveis, mantendo o mercado imobiliário aquecido, especialmente o mercado de trabalho associado à construção. Isso tem direcionado o mercado para construção de imóveis para aluguel, tendo em vista que o custo de alugar, hoje, é menor do que financiar um imóvel próprio.
O quarto trimestre será desafiador para o consumidor americano, com diminuição do poder de compra, devido à queda na poupança, crédito escasso, volta da cobrança de empréstimos estudantis, além do movimento recente de alta dos combustíveis. O estoque da dívida das famílias está em valor recorde, o que, em meio à alta dos juros, colocará ainda mais pressão sobre as finanças familiares. O ponto de sustentação tem sido o mercado de trabalho que, apesar de desacelerar, ainda se mostra bastante robusto.
Nos próximos meses, a atenção estará voltada para as taxas de juros. Com a taxa de juros real de 10 anos se aproximando dos 2% nos EUA, podemos ter repercussões importantes nos ativos de risco. Além disso, a paridade do yuan e dólar será foco de atenção. Se a China não conseguir defender o patamar de 7,30 podemos observar uma piora adicional nos ativos de risco. Historicamente, quando o USDCNH está acima de 7,20 yuans por dólar e em tendência de alta, o que é a situação atual, vemos os setores ligados às commodities metálicas performando bem, enquanto os setores mais ligados à tecnologia, crescimento e consumo performando mal. Isso é particularmente válido quando temos uma demanda crescente por commodities metálicas, no entanto, essa relação pode estar enfraquecida no momento em que o mercado imobiliário desacelera.
A alta dos juros, por sua vez, pode não parar no curto prazo. Enquanto não houver maior clareza sobre os próximos passos da política monetária o mercado continuará testando a taxa de juros longa. Isso aumenta o risco de algo relevante sair dos trilhos. Nesse contexto, surgiram nas últimas semanas a discussão de alteração da meta de inflação para um valor acima dos atuais 2%. É uma discussão que tem o seu mérito, mas ainda é muito cedo para concluir que a economia americana esteja passando por uma mudança estrutural que enseje tal mudança. Parafraseando Vladimir Lenin, tem décadas em que nada acontece, tem meses em que décadas ocorrem. Agosto foi um desses meses.