Introdução: o que é um hedge?
Investidores que buscam se proteger da perda do poder de compra da moeda costumam alocar certa parte do portfólio em hedges contra a inflação. Esses hedges são ativos que historicamente foram capazes de performar bem em termos reais mesmo em períodos de elevadas variações no nível de preços da economia. A fim de determinar se o bitcoin ou qualquer outro ativo pode ser categorizado como um hedge,é necessário, primeiramente, compreender melhor o que é inflação e de que forma ela é mensurada.
Para calcular a variação no poder de compra da moeda, é necessário escolher uma cesta fixa de ativos e analisar a variação do preço desta cesta com o tempo. A cesta escolhida deve representar da forma mais fidedigna possível o real consumo da maior parte da população. A partir dessa cesta é construído um índice de preços. Nos EUA, o principal índice de preços é o CPI: Consumer Price Index, enquanto, no Brasil, o índice mais importante é o IPCA.
Cabe ressaltar, portanto, que esse índice não “existe” como algo tangível, é uma construção teórica que, dependendo da metodologia adotada, pode gerar resultados variados. A inflação experimentada pela população de baixa renda é muito diferente da experimentada pela população de alta renda simplesmente porque os hábitos de consumo dessas pessoas não são idênticos. Apesar dessas limitações, a construção de um índice de preços é extremamente útil para realizar análises econômicas e para nos permitir ter uma noção da real perda do poder de compra da moeda.
Diferentes hedges contra a inflação
Devido à intangibilidade associada a esse índice de preços, os únicos tipos de ativos capazes de replicar perfeitamente a sua variação devem ser construídos de forma artificial por meio de contratos. Por exemplo, tanto no Brasil quanto nos EUA, há títulos de renda fixa públicos e privados indexados à inflação, os famosos IPCA+, mas há também derivativos e outros contratos oferecidos pelo mercado financeiro que garantem esse tipo de proteção.
Por outro lado, há ativos tangíveis cujo preço é determinado de forma livre pelo mercado, e, portanto, apresentam uma rentabilidade variável. Por terem performado relativamente bem em períodos de elevada inflação em diferentes nações com diferentes moedas de curso legal, são tradicionalmente vistos como hedges. Dentro dessa categoria, o principal ativo é o ouro.
Diferentemente do que ocorre com títulos indexados e outros contratos ligados à inflação com os quais é possível determinar uma rentabilidade real fixa à priori, no caso do ouro ou do bitcoin, independentemente do quão consolidado seja seu respectivo mercado, sempre haverá idiossincrasias e, portanto, sempre haverá maior volatilidade
Os títulos indexados são, por definição, um hedge contra a inflação. A parte pré-fixada desses títulos indexados é o que chamamos de juros reais, pois representam a remuneração que o investidor receberá após descontar a perda do poder de compra da moeda. Dessa forma, quanto maior esses juros, mais esses títulos se tornam atraentes em relação ao ouro ou outros ativos que podem vir a ser considerados como hedges contra a inflação, como imóveis.
Atualmente, a principal finalidade do ouro na perspectiva dos investidores é proteger seu patrimônio das perdas causadas pela inflação. Nesse contexto, o custo de oportunidade de adquirir esse ativo é determinado pela taxa de juros reais associadas aos títulos indexados. Por essa razão observamos uma correlação quase perfeitamente negativa entre os juros reais e o preço do ouro: quanto maior esses juros, maior o custo de oportunidade de manter uma posição desse metal no portfólio.
Caso o Bitcoin fosse realmente visto como um hedge contra inflação pelo mercado, o custo de oportunidade de adquirir esse ativo também seria majoritariamente determinado pela taxa de juros reais da economia. Entretanto, o preço da bitcoin se comportou de forma descorrelacionada aos juros reais desde seu intercepto.
O que observamos na realidade é uma correlação significativa entre o bitcoin e ativos tradicionalmente caracterizados como ativos de risco e cíclicos – ativos mais sensíveis ao estado da economia em geral. Esse fenômeno, que ilustramos mais detalhadamente na última versão do criptoworld sobre cenário, surgiu nos últimos anos após o início da crise causada pela pandemia em 2020, em que os bancos centrais e os governos “jorraram” dinheiro na economia a fim de estimular a demanda e aliviar os efeitos negativos gerados pela crise econômica na população.
Abaixo no gráfico, mostramos como a correlação entre esses ativos discutidos anteriormente se comportaram com os anos. Utilizamos o índice de ações americanas Nasdaq para enfatizar o comportamento inusitado do bitcoin a partir de 2020.
Afinal, o bitcoin falhou como hedge?
Isso significa que o bitcoin, um criptoativo que muitos afirmavam ser uma reserva de valor e uma opção para se defender de políticas econômicas heterodoxas falhou como hedge contra inflação?
O CPI nos últimos meses tem registrado altas não vistas há mais de 40 anos. Entre janeiro de 2021 e junho deste ano, o CPI acumulou uma alta de 10%, enquanto o preço do bitcoin continuou próximo do patamar de 30 mil dólares, apesar da elevada volatilidade. Logo, não há como negar que esse criptoativo falhou em proteger os investidores contra a perda de poder de compra do dólar nesse período.
Preço vs Fundamentos
Como explicamos, o índice de preço que atualmente é utilizado para determinar a inflação é construído de forma teórica, sendo apenas uma proxy para o real poder de compra da moeda. Para alcançar o comportamento quase mecânico que observamos no caso do ouro, é necessário que haja um mercado maduro e composto por investidores institucionais que pensam e agem de forma semelhante.
O mercado do bitcoin é cerca de 10 vezes menor que o do ouro. Além disso, é um mercado com menos de duas décadas de existência, enquanto há milênios o metal precioso é utilizado. Para finalizar, ainda não vimos adoção institucional sistematizada dessa criptomoeda.
No mercado, os preços dos ativos são determinados na margem. Há inúmeros investidores e traders que compraram bitcoin com um objetivo estritamente especulativo porque foram atraídos pela rentabilidade cujos antigos proprietários foram premiados no passado. Em contrapartida, há investidores que foram atraídos pelos fundamentos da tecnologia. Esses investidores não pretendem vender no curto prazo.
Em um mercado menor e menos sofisticado, as ações dos especuladores geram um efeito desproporcional no preço do ativo subjacente, o que contribui para maior volatilidade e, principalmente, contribui para maior queda do preço quando esses investidores mais preocupados com o curto prazo decidem vender. Para gerar o efeito protetivo contra a inflação, é necessário que os participantes do mercado acreditem que a representatividade desses especuladores seja relativamente baixa em relação ao restante dos participantes do mercado, o que, até o momento, não é verdade.
Um fato bastante positivo e útil para aqueles que buscam acompanhar os fundamentos do bitcoin é que os dados da blockchain são totalmente públicos. Assim, torna-se possível diferenciar as carteiras que não movimentaramm seus bitcoin nos últimos anos daquelas que realizam movimentações periódicas. A empresa de análise de criptoativos Glassnode utilizou esses dados para estimar quantos bitcoins os investidores de longo prazo possuem.
Por meio do gráfico disponibilizado pela Glassnode, pode-se verificar que, sempre nos momentos de maiores quedas, aqueles que adquiriram seus bitcoins há menos tempo, no gráfico identificados como Short-Term Holders, são os responsáveis pela maioria das vendas, enquanto a participação daqueles que não movimentam seus bitcoins há pelo menos 6 meses, Long-Term Holders, segue aumentando.
Durante o período desde janeiro de 2021 em que o bitcoin tem tido resultados decepcionantes e a inflação foi bastante elevada, observamos um aumento expressivo do percentual de bitcoins mantidos por investidores de longo prazo. Em 2022 essa métrica bateu a máxima histórica repetidas vezes.
Conclusão
A ação de especuladores e o excesso de dinheiro na economia provavelmente foi um fator relevante que contribuiu para o movimento excessivo observado em 2020, em que essa criptomoeda valorizou 300%. O aumento da correlação observada nesse período com ativos de risco como o índice Nasdaq corrobora essa tese. No entanto, desde o final do bull market iniciado em 2020, investidores de longo-prazo têm aproveitado a oportunidade para comprar os bitcoins daqueles que entraram no mercado há menos tempo e já decidiram vender. Além disso, observamos o início da adoção por parte de investidores institucionais e, até mesmo, por parte de nações como El Salvador e a República Central da África.
Apesar de não ter atendido as expectativas em relação ao seu preço nos últimos anos, o que se observa nos fundamentos é justamente o que se esperaria de um hedge. Principalmente ao considerar que os países que passaram a utilizar mais essa criptomoeda são aqueles que apresentam taxas de inflação historicamente elevadas, e elevada desconfiança nas autoridades públicas por parte da população.